domingo, 21 de março de 2010





CONTAS À VIDA

As mãos encarquilhadas pelo peso dos anos, desfiavam as contas do rosário, daquela vida que tantas amarguras, tormentos e horas difíceis, tinham sido apenas os seus presentes.
Uma família tão grande, o seu finado homem, que só porrada e palavrões do cabo da esquadra, achados nos vapores do álcool, porque em toda a sua vida, só na bebedeira encontrou a fiel companheira, foram os únicos mimos a que teve direito.
Oito filhos, quarenta e um netos e dez bisnetos, espalhados por esse mundo de Deus, pois a emigração foi a única maneira de tentar uma melhor sorte.
Tanto... afinal para nada sobrar, a não ser a Bolinhas, uma gata pachorrenta, gordinha, de pêlo bem tratado, que era o único parente, testemunhando uma enorme família reduzida a nada, pelas contingências de vida, que sempre foi implacável com ela. Assim, as duas partilhavam o mesmo pires de leite, a mesma cama e as longas conversas enquanto, nas tardes curtas de Inverno, a Bolinhas se dava ao luxo de brincar com o novelo de linha, que num mimoso croché, aumentava um enxoval, quem sabe, para a bisneta mais nova, já em idade casadoira.
Tudo corria bem até aqui, pois já se tinha conformado com este único grau de parentesco, quando até a Bolinhas, tinha ido embora.
Que ingratidão!
Já nem se lembrava de há quantos dias, a sua Bichana tinha fugido, como iria agora preencher tal vazio?
Mas, naquele final de tarde, perdida nos seus pensamentos, recordando o pouco que teve e o muito que tinha perdido, ouviu um “miar” diferente, como um chamado de alegria e regresso ao aconchego. Quietinha, suspendeu até a respiração por breves segundos, pois precisava certificar-se do tão esperado “miar” e com um sorriso aberto, que logo lhe aqueceu o coração: Ai a minha Bolinhas! Só pode ser ela... levantou-se com o custo habitual de quem carrega todas as artrites e lá se arrastou, pela casa fora (também era pequena)... e seguindo o som daquele “chamado”, que tão bem conhecia, foi directa á marquise e no canto esquerdo, ao lado da sua velha máquina de costura, lá estava ela, onde tinha improvisado nuns trapos velhos, um berço para os seus filhotes. Com o rabito em pé, que docemente passava nas pernas da sua grande amiga, apresentava-lhe, com orgulho e amor de Mãe, a sua ninhada composta de sete gatinhos.
Vês, são nossos!
Pensaste que eu ia te abandonar?
Desculpa... como tu, também eu ninguém tinha.
E ingrata não sou...sabes bem, minha grande amiga, que jamais esquecerei o dia em que me achaste naquele pinhal, onde fui abandonada. Cheguei mesmo a pensar que seria o meu fim. Esfomeada, com o meu corpo cheio de feridas, já nem forças tinha para correr atrás de um ratito que fosse e entregue á minha triste sina... apareceste tu, com o teu enorme coração, pegaste em mim ao colo e falaste doce comigo: “minha bichinha.... pobrezinha... quem teria tido a coragem de te abandonar aqui?” ele há gente para tudo, mas deixa estar, eu vou tomar conta de ti. E eu confesso-te, naquele momento nem queria acreditar, mas tu aconchegaste-me no teu peito, trouxeste-me contigo, curaste as minhas feridas e temos partilhado a nossa vida.
Mais uma vez, peço-te: desculpa-me e agora que a nossa família aumentou....olha como são lindos... pega neles, pega!!!
Não te zangues comigo... foi tudo o que me sobrou duma noite mágica, em que me deixei encantar por um “gato vadio”


Milena Guimarães
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2 comentários:

  1. Somos todos junções de pedaços que somam nossa história, única, impar e que descortinam nossa trajectória...
    No teu caso somatória de vitórias...

    Parabéns pelo Blog!!!
    Beijinho
    Jorge Machado

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  2. que bonito quem o escreveu deve ser uma alma que irradia os outros com a sua sesibildade e beleza interior

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