domingo, 23 de outubro de 2011


DEVER CUMPRIDO


Enquanto a noite cumpre deliciosamente a sua tarefa, distribuindo insónias a uns, pesadelos a outros, sono tranquilo a poucos e sonhos a tantos...eu no limiar da minha consciência, atravesso fronteiras com a cumplicidade dos Deuses e percebo como só os audazes amantes, fogem às leis “do hipocritamente certo”, para se entregarem à realidade da paixão, da loucura, conseguindo gota a gota encher a taça de todas as emoções em pleno êxtase, antes que a noite se faça dia...
E plena de incertezas mil, depois de tanto pensar e repensar, sem conseguir chegar a conclusão alguma… só mesmo ela para atender esta minha curiosidade. Sem mais delongas e sem entrevista marcada, voando nas asas da minha imaginação, atravesso as estrelas, rompo algumas nuvens que tentam assombrar-me e eis-me ao portão do fantástico aconchego da Poderosa Noite.
Truz…truz...
Tem alguém em casa?
Um momento por favor. Aqueles segundos de espera…a porta chiando abria-se, para dar passagem a uma mulher altiva, elegante, um belo vestido preto (lembrei-me logo da minha mãe: filha, um vestido preto…toda a mulher deve ter um no guarda roupa…) com gestos simpáticos e até de uma certa ternura, convida-me a entrar dirigindo-se para uma bela sala de estar, bem decorada, muito aconchegante e bastante glamour, senta-se num sofá e oferece-me o lugar junto ao seu.
Mas a que devo a honra da sua visita?
O que a trás aqui…eu que raramente recebo alguém?
Pedi de imediato as maiores desculpas pela ousadia de aparecer sem ser convidada, mesmo sabendo que não se deve fazê-lo e fui logo manifestando a minha curiosidade sobre o critério da atribuição de tais estados de alma e que género de pessoas escolhia.
Interessante... já me fizeram toda a ordem de perguntas, mas essa sua questão, para além de curiosa é bem pertinente e nunca ninguém a tinha feito.
Pois devo-lhe dizer que eu só existo para dar um “descanso” ao dia... de resto limito-me a ficar por aqui, apenas observando, assistindo a tudo e nem a Menina imagina do que são capazes todos os que, na minha própria cara se permitem fazer... de tudo, acredite... desde o crime em todas as versões aos mais ousados gestos de paixão e eu tirando as minhas próprias conclusões... e sempre que penso: bem…nada mais me espanta…engano meu, pois de imediato dou comigo boquiaberta com mais um episódio, sabe…daqueles que nem ao diabo lembra. Confesso-lhe o meu lamento de como se vive lá por baixo.
Mas sinceramente não sou eu que distribuo o que quer que seja...
Também sei de tudo que me acusam...muitos detestam-me, mas uma grande parte, sei que me ama e se pudesse, de tudo faria, para ficar comigo sempre e ignorar o Dia.
De todo... é cada um que se permite ser o que é...e quando na maioria das vezes não o consegue e aí sim, condição natural de todo o ser humano, culpar alguém pelos seus desencantos, frustrações, angústias e tudo a dar errado... mas quem? A Noite, obviamente... e até lhe digo mais, todos se esquecem que se deitam comigo, encosta a sua cabeça à minha no mesmo travesseiro, permitindo-se partilhar as suas dores, chorando as suas mais sentidas lágrimas, que eu sempre enxugo com beijos e palavras de alento, fazendo-os dormir de encontro ao meu peito. E de manhã, cada um acorda com uma vontade infinita de mudança, acreditando em si próprio... mas sabe? Nem um mimo me fazem, nem uma palavrinha que seja de gratidão… esquecem-se e voltam sempre de cada vez que o necessitam fazer.
E eu, com tanta sabedoria e humildade também nem ligo àquilo, que vocês lá em baixo chamam de ingratidão, vivo por aqui, sempre atenta a todos e a tudo, pronta para estender o meu manto, que a alguns tanto medo causa... a outros tanta ansiedade, pois é debaixo dele...que todas aquelas coisas, que até Deus duvida… acontecem.
Mas, como vocês mesmo dizem...” De noite todos os gatos são pardos”...
Esclarecida minha linda Menina?
Então... dê-me o prazer de tomar um chá comigo... tem preferência?
Pode ser de Camomila?
É o que tomo todas as noites, senão como é que acha, que eu assistia a tudo, sem sequer me dar um daqueles “AVC”, que tem acabado com tantos
Aceitei e tomamos o chá, mas eu não esquecia uma única palavra que aquela misteriosa mulher me havia dito.
Vá lá…porque esse seu ar tão sério e apreensivo? Não se preocupe tanto, seja irreverente sim e foi a irreverência que a trouxe até mim, siga sempre a razão, mas não se esqueça de dar ouvidos ao coração e quando invadir o meu espaço e sonhar, não se limite apenas a carregá-los na mochila que trás nas costas...dê-lhes corpo, alma e vida.
Despedi-me dela, dado o adiantado da hora e renovando o meu pedido de desculpa pela invasão...acompanhou-me à porta, sempre com gestos a que chamamos de “socialmente correctos”, dizia... volte sempre que tenha alguma dúvida e uma boa e agradável companhia como a sua, para quem como eu vive tão só...será sempre muito bem recebida, acredite... gostei de si... gostei muito...
Deixei-lhe o meu sorriso enquanto segurava a sua delicada mão nas minhas e com a promessa de voltar…aquela Poderosa Senhora fascinou-me...em poucas mas precisas palavras, atendeu a minha curiosidade confirmando-me que afinal... rir, chorar, sofrer, querer, ser forte, ter atitude, sonhar, cada um de nós deve-o a si próprio e tem que conseguir, basta apenas ACREDITAR, por isso mesmo trate logo de se mexer e mãos à obra, para poder sentir e gritar a vitória com o sabor a “Dever Cumprido”...


Milena Guimaraes


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