sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

                                                                                                
                                                                                               

 

                                    SENTADA

                                         

     Sentada na esquina do pensamento, viajo rumo ao infinito que apenas desponta na curva do vento brincando comigo de faz de conta e na incerteza do encontro, lá vou tropeçando na certeza de todos os desencontros.

     E do chão dos meus sentimentos, tento trepar ao telhado, na expectativa de melhor sentir todos os perfumes inebriantes que me chegam dos céus, trazendo a tua saudade, deixando que uma lágrima de cristal desça, acariciando o meu rosto, para me falar das reticências de um longo depois, cheio de mistérios no crepúsculo do dia.

     Mas é no mar das minhas ansiedades que vou caminhando descalça, enganando a tristeza, calando os medos, seduzindo o desejo onde tudo se encontra e nada se completa, chegando à cabana dos cios, onde o meu corpo em linguagem impura, se entrega sem o mínimo de razão, neste frágil refúgio ao prazer da procura.

     Se achei…

     Se acho…

     Se algum dia acharei…

     Não me questiono mais…

     Sempre que o faço, tudo para mim fica tão nada…

     Hoje, realmente qualquer afirmação não é mais necessária.

     Alguém chega…

     Alguém parte… e na madrugada dos meus olhos, maliciosamente te fotografo, te guardando em mim, com a tonalidade inquietante e o brilho questionador de um simples “ até quando”?

 

Milena Guimarães

 

   

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013


 
 
SEM PASSAPORTE

 

 

       Jovem, irreverente, brincalhona, perspicaz... nada, mesmo nada lhe passava ao lado. Os mimos eram todos para ela, ou não fosse filha única, de uma família classe alta, na bolsa e no berço...

       Completado o então “primário”, com distinção, há que traçar directrizes e saber o que a menina quer ser quando for grande... –

        Médica sugere o Pai... - nada disso - acrescenta a Mãe...

o melhor para a nossa filha é ser professora, tem muitas férias, muitas mais regalias e não tem que correr tantas vezes, fora de horas, para atender os pacientes, como tu.

- Mas, depois logo se veria...agora importante era decidir onde estudar.

- O Liceu era frequentado por todos, convinha um estabelecimento de ensino de eleição e nada melhor do que um colégio. Feitas as respectivas consultas e depois de tanto analisarem tudo ao pormenor, decidiram-se por um na bela cidade do Porto, de grande renome.

-         E assim, depois de tudo perfeitamente traçado, a nossa menina deu entrada no tão afamado colégio.

-         Tudo decorria na mais perfeita naturalidade, com todas as condicionantes de uma brilhante aluna... atenta, estudiosa, sempre com uma vontade infinita de saber.

-         Os anos sucediam-se com o habitual sucesso, para quem o tem, como destino certo.

-         As férias repartidas entre a sua cidade natal, uma bela cidade de Trás-os-Montes e a linda praia da Francelos onde a família tinha uma bela casa, permitiam todos os momentos felizes.

-         E de ano para ano, a encantadora menina, ganhava formas de mulher...os seios atingiam o tamanho perfeito, as ancas bem definidas sublinhavam umas pernas, feitas a própria tentação, um olhar de um brilho intenso, misturado com uma certa inocência, deixava adivinhar os pecados que qualquer mortal no masculino, teria a vontade e o desejo de praticar, diante de semelhante exemplar.

-         Estávamos em 1970 e a nossa protagonista tinha feito dezasseis anos...

-         A Beatriz, Bia como era chamada carinhosamente, pelos pais, família, amigas, colegas e alguns professores, tinha o mundo á sua espera e ela sabia disso... bastava olhar para o “jeitinho” já sedutor, que inocentemente ostentava, fazendo adivinhar, que tudo aquilo era o princípio de uma mulher fatal.

-         O segundo período quase a acabar com a chegada da Páscoa e nesta altura a exemplo do Natal, grandes companhias de circo instalavam-se na cidade, fazendo as delícias de gente de todas as idades.

-         E não fugindo á regra, estreava no Coliseu do Porto, um circo russo de afamada qualidade internacional.

-          

 

-         Tínhamos então pedido à Madre que nos deixasse ir ao Circo, mas como tudo tem uma contra partida, logo foi-nos informado que a nossa ida, dependia do aproveitamento e comportamento de cada uma de nós, durante a semana.

-         Contrariadas e fazendo de tudo, para cair nas boas graças da Madre, conseguiam finalmente os resultados exigidos, para naquela tarde de sábado, tão sonhada...cantando e rindo, na linha 10 do eléctrico, o destino eram mesmo o tão desejado circo.

-         .

-         Até aqui tudo se apresentava com um ar feliz e quase incrédulo de uma meia centena de adolescentes em perfeito internamento, aproveitando ao máximo aquela tarde de festa.

-         Entre gargalhadas e olhares brilhantes, lá se assentavam nos respectivos lugares, que lhe tinham sido destinados, no número de cada bilhete.

-         Faltava ainda uma boa meia hora para o grande espectáculo começar e enquanto isso não acontecia, brincava-se em descobrir palavras no enorme pano do palco, que esperava calmamente ser subido, para o início do espectáculo.

-         Neste entretanto, surgido não sei de onde, apareceu um homem enorme, mais parecia ter uns dois metros de altura, magro, elegante com postura de Rei, aparentando trinta e alguns anos, embora vestido num fato de macaco, cabelo preto brilhante, amarrado num rabo de cavalo, cor de ébano, dois olhos negros, misteriosos e profundos, logo se aproximou da nossa Bia e lhe meteu na mão, um papel que era um canhoto de um bilhete, onde apenas estava escrito um número de telefone.

-         O coração da nossa menina parecia que ia sair-lhe pela boca fora, embora as colegas mortas de inveja, tivessem logo manifestado o seu desagrado, argumentando que o dito cujo só poderia ser “arrumador” do Coliseu... logo não seria pessoa certa, para além da diferença de idade, era de certeza absoluta muito inferior à classe privilegiada, de que todas faziam parte.

-         Alheia a tudo isto, Bia só queria mesmo saber quem seria aquele “Adónis”, pois no pedaço de papel, apenas um número de telefone.

-         De repente, ainda com o pano fechado, uma voz off bem marcante, dava início ao tão esperado espectáculo e entre assobios e palmas, começava a grande festa circense...

-         Nem é preciso comentar que a Bia pouca ou nada importância dava, independentemente da enorme qualidade dos artistas em todos as suas actuações, pois os seus olhos, que nem “moinhos de vento”, corriam em todas as direcções, na esperança de que em algum lugar, da enorme sala, batessem de frente com aqueles olhos que tanto a fascinaram. Mas nem sinal...começando na sua cabeça a ocupar um lugar bem doloroso, a ideia de que poderia ter sido apenas uma visão...não, não podia ser...ela tinha-o visto e o papel com um número de telefone era prova mais que evidente disso.

-         E sem se aperceber que o tempo avançava, chegava o intervalo.

-         Todas se dirigiram ao bar, beber laranjadas, comer chocolates, irem ao WC e à medida que se iam despachando, retomavam os seus lugares, para a segunda parte.

-         No palco, já montadas as jaulas, à partida bem seguras, exibiam sete exemplares de belíssimos Leões, à espera de poderem desafiar o seu domador, para os habituais arriscados números

-         E mais uma vez, em voz off, o director do circo dava início á segunda parte, exaltando a qualidade, o talento, a bravura, a destemida exibição, do maior, do melhor “domador de feras” do mundo...

-         “Meus Senhores, Senhoras, Meninos e Meninas...convosco “Vladimiro  Ivanoff...

-         Aquele deus de cor de ébano, de tronco nu, braços de um músculo só, de braçadeiras de metal reluzente até aos cotovelos, calça colada no corpo, de couro preto e de chicote na mão... que acabara de entrar na jaula... é isso mesmo que devem estar a imaginar...nada mais nada menos, do que o “tal arrumador”, que tinha deixado o bilhete na mão da nossa “jovem”...

-         Claro, como seria de esperar, nenhuma colega teve coragem de qualquer comentário... a inveja apenas tinha secado a garganta, de todas, que pagariam qualquer preço, para que o dito bilhete, lhes tivesse caído em sorte.

-         Qual espectáculo... por mais arriscada que era a dita actuação do “grande artista”, a Bia só tinha olhos para ele e para todas as fantasias, que a sua jovem cabecinha, ainda cheia de inocência, conseguia imaginar.

-         Acabada a sessão, tudo se levantava e tomava o rumo da saída, menos a Bia, que se atrasava na intenção, de pelo menos, mais uma vez, pôr os olhos nele...mas em vão, assim num silêncio profundo, o destino era o enfadonho colégio.

-         Chegada ao seu destino de clausura, logo inventava um motivo para uma saída á papelaria, que ficava a poucos metros, alegando a compra de uma sebenta, já que a sua estava no fim de todas as páginas...qual quê....o motivo era mesmo telefonar, queria e precisava saber mais e mesmo sem saber a quem pertencia aquele número, todo amarrotado, bem guardado no segredo da sua mão, suada e gelada pela ansiedade e tremendo como varas verdes, lá pegou no telefone e marcou o dito número...do lado de lá, uma voz roufenha de homem...- boa tarde, pensão Escondidinho, faz favor de dizer...

-         - Queria falar com o domador dos leões, por gentileza...

-         O homem do outro lado do fio, percebendo a voz trémula e meia assustada da jovem, logo se adiantou.... a menina sabe falar estrangeiro, olhe que o fulano não dá uma para a caixa, em português.

-         Perspicaz como só ela, logo respondeu que falava muito bem várias línguas, pois no seu sétimo ano do Liceu, achava-se rainha, pelo menos no seu inglês e francês.

-         - Um momento....eu vou chamá-lo...

-         O tempo de espera era infinito e para mais, os períodos sempre a contar...às tantas nem dinheiro teria para a chamada.

-         -Hello ... Hello...

-         Como conseguiu arrancar a voz á sua garganta perfeitamente estrangulada pelo nervosismo, se ainda hoje lhe perguntassem, de certeza que não saberia responder.

-         - Sou a menina do bilhete...

-         E numa salada fantástica, servida em castelhano, francês e inglês, lá foram confessando a paixão fulminante que os tinha atingido...

-         Queriam muito encontrarem-se... mas como seria possível, se a Bia vivia interna no colégio... e quando o seu enamorado, do lado de lá, com aquela voz quente, que lhe provocava um arrepio só, lhe dizia que só depois da uma da manhã ficava livre... ela queria ter morrido logo ali, perante a impossibilidade de o voltar a ver, ainda que só mais uma vez...

-         Mas o herói tinha percebido e logo tratou de a tranquilizar, pedindo-lhe que lhe telefonasse no dia seguinte, à mesma hora...ele iria pensar e arranjar-se-ia uma solução.

-         Que dia mais comprido... a eternidade era de longe muito mais curta...

-         Enfim chegou o dia seguinte e cheia de ansiedade e confiança, tinha a certeza que o que quer que fosse, seria a sua felicidade.

-         Depois dos beijinhos habituais....dizia o seu amado...só há uma maneira de nos vermos...tens que arranjar a sair daí, já aluguei um carro e vou ter contigo. Sem qualquer hesitação, pois era tudo o que mais desejava, logo adiantou todos os detalhes do lugar, da hora, sem lhe deixar perceber a grande aflição que lhe enchia a alma, se de todo não conseguisse sair, sem ser apanhada, dadas as mil dificuldades, que de certeza absoluta, atravessar-lhe-iam o percurso até aos braços do seu primeiro amor.

-         Eram 18 horas, mais minuto menos minuto, tinha ainda o jantar,  uma horita na sala de convívio, onde assistiam à televisão ainda a preto e branco, riam, conversavam e depois das orações em grupo, só restava mesmo ir dormir. Cada dormitório levava vinte camas, dez de cada lado, um largo corredor a meio e na parede do fundo, os respectivos armários com o número de cada cama. A da Bia era a número onze, a primeira da fila do lado direito, perto da porta...que quando lhe tinha sido atribuída fez-lhe um frio na barriga, com medo...não fosse algum dia, entrar algum ladrão e ela seria a primeira a ser atacada... lembrou-se deste pequeno episódio, enquanto planeava a sua fuga e até esvoaçou um sorriso...sorte a dela estar perto da porta, sempre facilitava um pouco mais. O problema era como iria aguentar tantas horas de espera, sem trair a ansiedade e o nervosismo, que tomavam conta dela, sem dó nem piedade.

-         Mas, qualquer feito desta envergadura, obrigatoriamente tem um cúmplice e a melhor amiga, a confidente, a Maria Manuel que dormia na cama doze, era realmente a única com quem partilhava todos os seus segredos, em longos sussurros de todas as noites, enquanto todas dormiam a sono solto...

-         Mas desta vez era demais, ela não queria acreditar no plano da sua amiguinha, era tão arriscado, que a Maria Manuel só podia ter-se benzido, como o fez e tivesse pedido à sua amiga que desistisse, enquanto era tempo, mas perante a teimosia da Bia, que de resto conhecia e muito bem, logo percebeu de que nada adiantaria semelhante aviso...

-         - Que é que eu faço, perguntava ela aflita, se alguma irmã resolve, a meio da noite, vigiar o dormitório?

-         - Ora essa, nada...mesmo que estejas acordada, fazes de conta que estás no primeiro sono... eu garanto que me vou safar.

-         Se depressa o disse, mais depressa o fez...

-         Faltava ainda uma hora para o tão esperado encontro, mas não fosse o diabo aprontar alguma, havia que começar.

-         De pijama, apenas passou pelas costas uma mantinha de lã, que carinhosamente a sua Avó lhe tinha feito, certificou-se que todas as suas colegas dormiam, algumas até ressonavam e com todo o cuidado sem uma pitada de barulho, compôs um volume na sua cama, com algumas roupas que já tinha preparado, o mais parecido com o seu corpo adormecido, enquanto sonhava com os anjos. Aconchegou os cobertores e lá se aproximou da porta, que começou a abrir muito devagarinho, para evitar qualquer chiadeira. Como conhecia os cantos da casa, foi até á cozinha, pois a porta de serventia dava para o quintal e como todas as portas ficavam fechadas só com o trinco, também os tempos eram outros, havia na época poucos empregos para a ladroagem...apenas o portão principal, esse sim, por volta das dezanove horas era fechado a sete chaves e ainda trancado com um varão de ferro na diagonal, desde a parede do muro bem alto, até á fechadura, varão esse que tantas vezes serviu, para as acrobacias da Bia e das colegas.

-         Assim, pé ante pé lá conseguiu chegar ao quintal.

-         A noite embora linda demais, pois a lua cheia, estendia o seu manto de prata, também lhe causava um imenso medo, à medida que cada sombra das árvores, confundia-se com vultos e que até se mexiam, sempre que o vento levemente agitava os seus ramos... sentia muito medo sim, até pensava em voltar atrás, queria respirar e nem ar tinha...- Não...já que tinha chegado até ali, tinha que ir até ao fim...afinal era mesmo uma menina cheia de coragem. Sempre com muito cuidado, pois sabia que ali, só o enorme cão de guarda, poderia ser o seu inimigo número um... mas até o animal colaborou, deitado na sua casota, dormia tranquilo, pois tinha a certeza que os perigos não cursavam em colégio de gente fina.

-         O colégio ocupava um quarteirão enorme, fazendo esquina com duas ruas e nessa mesma esquina havia um tanque enorme, com um lavadouro, o que lhe facilitaria e muito a subida para passar o muro, assim...sempre atenta e com olhos de lince, lá trepou ao dito cujo, levantou com enorme esforço o arame farpado, conseguindo passar sem se magoar.

-         Do outro lado do muro, em plena liberdade, o seu amor...estendendo os braços fortes, pegando-a no colo, num abraço apertado de doer, mas curto, não fosse passar alguém e fizesse alarme.

-         Entraram no carro...um Renault 8, azul de matrícula FH-55-10, que nunca mais esquecer-se-ia dele e aí sim, um profundo suspiro de alívio... tinha conseguido, agora sentia-se completamente protegida e confiante no seu amor, no seu herói.

-         Arrancaram dali e tomaram o caminho do mar, sempre pela Circunvalação fora, até chegarem a Matosinhos, viraram à direita e foram parar numa praia deserta e linda, a praia da Boa Nova, já em Leça.

-         Desde sempre, o mar e a lua foram cúmplices de grandes amores...não estavam sós...aqui, além, outros carros, outras histórias, mas de certeza absoluta, todas de momentos mágicos, quiçá clandestinos, por isso mesmo inesquecíveis.

-         Nem de propósito, no rádio do carro, o Adamo interpretava “La Nuit”, o som não era da melhor qualidade, mas pelo menos audível.

-         O nervosismo dos dois era tão notório, que lhes faltavam as palavras, mas as suas mãos falavam por eles, procuravam-se, apertavam-se em tais carícias, em toques tão sublimes, suaves e cheios de candura...que podem crer... o pecado não morava ali.

-         E os beijos... os beijos tinham o sabor de amoras silvestres, colhidas numa manhã orvalhada de Primavera.

-         E aquele homem que lidava com feras...como era possível ser tão suave, com gestos tão delicados e carinhosos, como se a Bia fosse uma boneca de “Limoges”, que de jeito algum ele poderia partir.

-         Perfeitamente enamorada, a cada segundo o seu fascínio por ele, aumentava desmedidamente.

-         Não houve sexo naquela noite...muito amor, muito carinho, muita ternura, muita sedução e a promessa de que amar-se-iam para toda a vida.

-         E quando olharam para o relógio...meu Deus, quatro e meia da madrugada...e agora o regresso ao colégio, nada podia dar errado, seriam os mesmos passos no sentido inverso, meter-se-ia na cama e mesmo tendo a certeza que não conseguiria dormir, tal era o seu estado de paixão, uma coisa tinha a certeza, às sete levantar-se-ia como todas, ao toque da campainha.

-         Chegaram... um beijo sufocado de despedida, o compromisso de voltar no dia seguinte e logo ele a pegou ao colo, para delicadamente a ajudar a subir o muro...depois de o transpor...tudo era com ela e com o imenso medo que tinha de ser apanhada.

-         Mas tudo corria como tinha previsto, naquela noite e nas quatro seguintes.

-         O pior foi mesmo, quando na quinta noite, o seu amado lhe dizia que no dia seguinte o circo iria partir.

-         Não podia estar a ouvir direito, o seu coração ia explodir de tanta dor, as lágrimas grossas e sentidas, corriam em seu rosto...só queria morrer mesmo ali.

-         Vladimiro aconchegando-a de encontro ao seu peito forte, logo lhe foi garantindo que a levaria consigo e sem sequer saber como, Bia parava de chorar, para atentamente beber tudo o que teriam de combinar, pois a única maneira de continuarem juntos... era mesmo ela ir com ele, assim na noite seguinte, quando se encontrassem, já não voltaria mais ao enfadonho colégio.

-         Seria o último espectáculo e estava planeado, por volta das quatro da manhã, a companhia far-se-ia à estrada.

-         Assim, quando dessem pela falta dela, já estariam longe, para além de ninguém desconfiar do seu paradeiro, pois a Maria Manuel era a única que estava a par de tudo o que se passava e disso ela tinha a certeza, nem morta lhe arrancariam uma palavra.

-         Lá tinha metido num saco, meia dúzia de peças de roupa e mal conseguia esperar o tão desejado momento.

-         Chegava finalmente a noite da fuga, todas as emoções, todos os medos, a ansiedade, tudo mesmo tudo, se multiplicava por mil...aquela noite...meu Deus...como lhe pedia perdão e ajuda, pois nada, rigorosamente nada poderia falhar...

-         Mas talvez por ter sido a última, foi sem sombra de dúvida a mais difícil, doeu demais, podem crer.

-         Quando chegaram à residencial, onde o seu amado estava instalado, para apanhar os seus poucos pertences, o director e proprietário do afamado Circo, o Sr. Velasquez... esperava com algum nervosismo e um ar de reprovação espelhado no seu rosto, de homem forte, duro, marcado pela agruras da vida circense, que como bem devem imaginar... são mais que muitas... pois o espectáculo colorido e cheio de atracções é mesmo para quem assiste.

-         - Isto vai ser uma carga de trabalhos...comentava ele...levar uma garota, sim ela é uma garota e apenas isso e ainda por cima fugida... mal ele sabia, que a Bia só tinha consigo o cartão do colégio...

-         Achou por bem dizer logo de uma vez, pois entendia que seria bem melhor, mesmo que fosse obrigada a ficar ali, do que seguir viagem, não fosse o dito Sr. Velasquez, num ataque de raiva, largá-la em qualquer lugar, entregue apenas ao seu paupérrimo destino.

-         Então sim... aqui é que foram elas... resmungou, vermelho como um tomate, deitava as mãos à cabeça e enfurecido como só ele, convenhamos que o caso não era para menos, não se convencia do que lhe estava a acontecer... concordar em levar na caravana, uma garota fugida, de boa família, menor, sem bilhete de identidade, nem passaporte... o homem das feras, só podia estar louco, tinha perdido completamente a razão....Nunca... Nunca... gritava, sair do País, atravessar fronteiras e ir por esse mundo afora...

-         Vladimiro via tudo tão dificultado, tão impossível, tão incapaz de dar continuidade ao seu grande amor, que sem meias medidas, com a determinação e porte de grande senhor, foi logo argumentando, sem deixar qualquer dúvida... se ela não pudesse seguir com eles... tudo bem... ele abandonaria o circo, ficava com ela e lá deveriam achar um caminho.

-         Perante tal atitude cheia de firmeza, o implacável dono de tudo, logo se apercebeu... era pegar ou largar, mas o Domador que era peça importante daquele jogo e que o acompanhava desde o início, substituindo o seu Pai, figura de proa, também no domínio “ das feras” e que tinha sido atacado gravemente em pleno espectáculo, no Coliseu de Roma, num difícil número de meter a sua cabeça na boca do leão, acabando por falecer mesmo antes de chegar ao hospital... bom... era mesmo pegar... e assim lá se juntaram à caravana, pois atrasados já estavam o bastante...

-         Mas que tinha de arranjar uma solução, não lhe restava outra alternativa.

-         A Bia, se por um lado, o seu coração batia desmedidamente de alegria, por outro também se sentia angustiada, por ser o motivo de tanta turbulência, tanto mais que o Velasquez não tirava os olhos dela, nem por um minuto.

-         Tinha-se feito luz... lembrou-se daquela jovem trapezista, filha do mestre no trapézio, que fazia parte dos números mais arriscados e aplaudidos do espectáculo e que por desdita sorte, tinha ficado numa cadeira de rodas, aquando de uma queda, lá de cima, sem rede, tinha deixado de fazer parte do elenco, lamentavelmente. A pobre Giselle da Hungria, mas de origem francesa, uma menina bonita, de pele muito clara e bem loira, tinha realmente algumas parecenças com esta, que forçosamente teria de carregar e sem qualquer proveito... sem hesitações pegou num pequeno baú de madeira, sentou-se e com ele no colo, logo o abriu e remexendo em montes de papelada, achava um passaporte e em perfeito jogo de ping-pong, entre a Bia e a fotografia da infeliz artista, que até facilitava, dada a pouca qualidade da foto....decidiu....seja o que Deus quiser.

-         E assim, sem contrato assinado, a Bia sem mesmo se ter pronunciado, acabava de se alistar, no número mais arriscado de toda a sua vida... atravessar o mundo na “corda bamba”...

-         E lá seguiram viagem.

-         Tudo era uma novidade só.

-         O jeito como aquela gente vivia, em perfeita partilha, de dor, sofrimento, privações, sacrifício, o trabalho....

-          Sim, porque não pensem que a vida do circo... é um mar de rosas, o produto final que nos é entregue, em belos espectáculos e que uma grande maioria de quem assiste, ainda acha caro o bilhete, não se iludam... vida dura e muito, podem crer.

-         Nem sempre onde chegam, têm Coliseus ou grandes salas de espectáculos, para actuarem... então há que procurar espaço, tirar licença na autarquia local, montar a tenda, desmontar depois... e com que rapidez o fazem e todos colaboram, independentemente do papel de estrela, que cada um desempenha.

-         Mas, não me esqueci do “do nosso casal”, já que o papel principal foi deles... e que papel.

-         Assim em perfeito estado de louca paixão, a Bia vivia todos os momentos com profunda emoção... tudo para ela era uma primeira vez... de vez em quando, lá se lembrava de tudo o que tinha feito, como deviam estar em pânico os seus pais e um frio tomava conta dela, a ponto de lhe gelar a alma, mas logo abanava a cabeça e sacudia aqueles pensamentos, que a deixavam tão mal, afinal sabia e percebia o tamanho de semelhante atitude, pois os valores nobres da vida, que trazia de berço... estavam com ela... só lhe restava mesmo o imperdoável.

-         Mas voltar atrás era impensável e em bom da verdade, também não queria. Já que tinha tido coragem de chegar até ali e se lhe perguntassem como, nem saberia responder... iria até ao fim, pois teimosia era coisa que não lhe faltava, a que ela mesma chamava de “determinação”.

-         E assim, todos os momentos a sós com o seu amado... eram inexplicáveis, em ternura, carinho, enlevo, desejo, loucura, paixão... era mesmo amor, daquele que a Bia só conhecia de todos os romances que tinha lido, pois na primeira pessoa, nunca tinha vivido... mas comparando, o seu superava qualquer folhetim que os seus olhos tinham lido.

-         Tudo era simplesmente fantástico com ele e cada detalhe a fascinava cada vez mais, principalmente o gesto e a delicadeza, atendia-lhe todos os seu pedidos, sentia-se sem dúvida, uma verdadeira Princesa.

-         Nunca teve pressa e aquelas cinco noites em que se tinham encontrado, ainda em Portugal, tinham sido de um carinho, de um romantismo, sem nada forçar... a Bia continuava como quando nasceu e quando acontecer, dizia-lhe ele...vai ser inexplicável, do jeito que cada um de nós, jamais o esquecerá. Esta garantia, dela tinha a certeza.

-         Mas tudo tem uma primeira vez e aquela noite mágica aconteceu em Villa de Llanes, nas Astúrias, onde se tinham instalado, para mais uma pequena temporada de espectáculos.

-         Habitacion Plaza, jamais esquecida...podem crer.

-         Mais uma noite de glória, coroada de aplausos e bem que todos os artistas, as tinham merecido.

-         Chegados ao seu aconchego e sem nada premeditado... tudo aconteceu...

-         Vladimiro tinha que tomar um duche, o odor das feras que tanto gostava, nada tinha a ver com aquela noite, exigia apenas o seu e o da doce Bia, assim e com receio de a intimidar, pois o que tanto gostava na sua “pequena portuguesa”, como lhe chamava, era a coragem misturada com a inocência que carregava nos olhos, nos cabelos, nas mãos finas e delicadas, enfim... em toda ela, nem sequer sugeriu o banho a dois.

-         Enquanto ela esperava e ouvia a água a correr, pensava em mil coisas, ao mesmo tempo...como seria a primeira vez...seria naquela noite...o que teria ela de fazer? Um calor que a escaldava, mas as mãos geladas...que raio seria aquela sensação...

-         Mas tudo isto se quebrava, pois o seu herói entrava no quarto, apenas com a toalha branca enrolada na cinta, o que mais fazia sobressair o seu lindíssimo tom de pele, no mais puro bronze.

-         Sentava-se na cama e encostado na almofada, esperava que a sua Menina refrescasse aquele corpinho lindo, que mais parecia ter sido esculpido a cinzel... aqueles minutinhos de espera... que coisa... tanto tempo...

-         Enfim, mal ela despontava no quarto, logo se aprontou a segurar-lhe na mão e ajudá-la a deitar...do cabelo escorriam-lhe gotas de água, que lhe caíam nos ombros e que ele bebia com beijos doces e suaves, enquanto com as mãos desatava o nó da toalha, deixando-a completamente nua, inteira, toda, virgem...

-         Olhava, contemplava e loucamente enamorado, levantava-se para pegar dois enormes ramos de flores, que a Bia nem tinha percebido como ele as tinha consigo...ajoelhando-se junto dela, começava então a desfolhar cada flor, pétala a pétala, cobrindo o corpo da sua amada. Depois, curvando-se sobre ela, delicadamente com beijos e leves trincadinhas,  lá tirava uma a uma, causando-lhe arrepios de tal intensidade, que a Bia não acreditava que tudo aquilo lhe estava a acontecer. Uma coisa ela tinha a certeza...nunca nada parecido, tinha sequer feito parte do seu imaginário.

-         E entre todas as carícias, beijos, tanta ternura, tanto cuidado do seu herói, ela sabia uma coisa....tudo o que pudesse acontecer naquela noite, nada seria “pecado”... e acreditem que não foi mesmo...disseram tudo um ou outro, fizeram todas as juras, amaram-se sem limites, entregando-se totalmente um ao outro, sem qualquer reserva, acabando por adormecerem agarrados, embriagados pelo cheiro, pelo suor, pelo êxtase, pela paixão, que ambos exalavam por cada poro de seus corpos, que a partir daquela noite, se fundiram num só.

-         E assim, apenas entregues a eles próprios, seguiram na caravana, parando em cidades, atravessando a Europa, sempre debaixo da batuta do grande mestre...o Sr. Velasquez, que para além de ser o proprietário e dirigir aquela gente toda, era também um pouco o Pai de todos, pois de proporções tamanhas, tinha um ar protector e embora sempre resmungasse com o que para ele, não passasse de um bom disparate, sempre acabava por compreender e tentar resolver a contento de todos.

-         Mas tanta felicidade assustava a nossa Menina e tantas vezes ela o confessava ao seu amado. Sinceramente tinha medo. Mal ela sabia o que a esperava, já que artes de adivinhação, nem de perto nem de longe, lhe passavam pela cabeça, embora pressentisse que esta vida maravilhosa, teria um fim... porque na verdade, esta linda história de amor, tinha começado da maneira mais errada possível.

-         E assim, saltando de terra em terra, sentia-se já um elemento daquela família circense, tão diferente em tudo, da sua... tão tradicional...

-         Chegavam então a Praga, a grande capital da Checoslováquia... meu Deus, por todos os lugares que tinham passado, nada era igual a esta cidade... quanta beleza, quanta diferença...os olhos da nossa Bia eram pequenos, para armazenar todas as coisas, que mais pareciam sair de um belo postal ilustrado.

-         Instalados num hotel de duas estrelas, modesto mas asseado, a uns vinte minutos do centro histórico da cidade, Hotel Strizkov, Lovosicka, 42 street, os momentos a dois, eram realmente indescritíveis, tudo era perfeito entre eles, atingindo completamente as raias da loucura, nenhum dos dois tinha coragem de perguntar ao tempo...quanto tempo mais? De uma coisa, tinham a certeza, acontecesse o que acontecesse, aquele amor seria sempre vivido, ainda que apenas fosse na saudade profunda, de uma dor maior.

-         Decorria o quarto dia, depois de ter assistido ao ensaio, o que acontecia todos os dias, dirigiam-se os dois, felizes e crianças, de mão na mão, rindo e achando tudo de uma ímpar beleza, para o hotel, sem sequer imaginar o que os esperava, para além daquela porta de roleta.

-         Na recepção do hotel... o Pai da Bia, o Tio por parte da Mãe, que era ao mesmo tempo o advogado da família e dois policiais da localidade... Pois, podem imaginar o pânico que tomou conta dela, a ponto de não conseguir articular uma palavra sequer, enquanto se urinava pelas pernas abaixo.

-         - Tinham que conversar e ela teria que regressar com o Pai- afirmava ele, com cara de poucos amigos.

-         Tomando logo consciência do que se iria passar, arrancou coragem ao inferno, só poderia ter sido e concordou, com a condição de só os quatro, o Pai, o Tio, ela e o Vladimiro, participarem da conversa.

-         Logo o recepcionista, um senhor de cinquenta e poucos anos, baixinho, um pouco calvo, de óculos redondos de fundo de garrafa, com manguitos até ao cotovelo, para proteger a sua farda de trabalho, que tinha ar de ser lavada à noite, para vestir no dia seguinte, encaminhou-os para a sala dos pequenos almoços, a única disponível e onde poderiam conversar à vontade, embora se notasse um certo nervosismo no seu semblante, não fosse tudo aquilo dar para o torto e  acabasse numa grande tragédia.

-         Lá se sentaram numa mesa de quatro lugares, mas ninguém... juro, tinha ar de quem apenas iria jogar uma bela “sueca”.

-         Entre acusações, reprovações e tudo o que possam imaginar, quem abria a mesa, era o Pai com voz austera, mas sem perder a postura.

-         Tudo ela ouvia e certa da razão do seu Pai, afinal não fora aquela a educação que tinha recebido e com o coração estraçalhado pela dor, pois tinha a certeza que o seu amor, a sua loucura...acabavam ali mesmo.

-         Com a determinação que era o seu apanágio, aceitava tudo, mas punha também condições, pois já que iria perder a única coisa importante da sua vida...  o Vladimiro, esse teria que ser poupado, apesar de muito jovem, sabia das leis que se praticavam na época, em nome da honra da família. Assim, logo manifestava humildemente acatar, ouvir e aceitar os castigos, as represálias, mas Vladimiro teria que seguir a sua vida, o seu mundo, sem que nada o afectasse, pois ela não tinha sido raptada nem obrigada a segui-lo, tinha ido de paixão e com paixão. Casar estava fora de questão, embora aquele mundo a tivesse fascinado, não era a arte circense, que iria abraçar. Menor e desonrada...restava a prisão para o seu herói e isso ela jamais iria permitir, sob a ameaça de que se isso acontecesse, matar-se-ia... jurava.

-         Depois de seis longas horas de conversa, chegava-se ao fim mais infeliz desta história, para os dois protagonistas.

-         Vladimiro constrangido e culpado, sentia-se o último dos mortais, tinha a certeza que todos os perdões suplicados, jamais seriam aceites. Aquela prova de fogo, era com toda a certeza a mais dura, a mais perigosa, a mais mortal, comparada com todas as que tinha tido, em plena jaula, com feras ainda por amansar.

-         Mas, a sua “Menina-Mulher”, como ele a tinha chamado em pensamento, naquele momento tão especial, tão sofrido e tão determinante, seria sempre sua.

-         Nada mais havia para ser falado. Tudo terminava ali.

-         Todos se levantavam e dava-se por encerrada aquela tragédia.

-         O grande domador de feras, cabisbaixo, com os olhos rasos de água, dirigia-se para a saída, mais parecendo um coelhinho cheio de medo, atravessando a floresta, temendo ser engolido pelo lobo mau.

-         Quanto aos três elementos restantes, pernoitaram por ali mesmo, já que só no dia seguinte regressariam a Portugal.

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-         E por uma questão de segurança, o Pai pediu um quarto com três camas, não fosse a Bia repetir a mesma graça de fugir, fechando a porta  e guardando a chave no bolso do pijama.

-         Já deitada e sem conseguir pregar olho, chorando copiosamente... é que teve consciência de tudo o que tinha feito, mas principalmente da dor que sentia no seu coração. Queria mesmo era morrer, pois a tortura de continuar vivendo sem o seu amor... não iria aguentar. Rasgava por dentro. Acabava de ser Mulher à força e pela força do sofrimento, enterrando vivo o maior dos sentimentos. O sonho tinha acabado e em seu lugar o mais terrível dos pesadelos.

-         E sem nenhum argumento, pois sabia bem o quanto tinha errado, aos olhos dos bons costumes, penalizava-se tendo como garantia, o facto de não saber como enfrentaria tudo o que viesse pela frente.

-         Três dias depois chegava à sua casa, onde a Mãe e quase toda a família, a esperavam entre severas críticas e distribuídos castigos, faziam chover torrencialmente perguntas, exigindo respostas com todos os pormenores e com a grande preocupação de saber se tinha atraso na menstruação, pois uma criança naquelas circunstâncias, não iriam aceitar

-         - Não, não podia ser a sua casa, acabava de entrar no inferno...pensava...como iria aguentar semelhante tortura...

-         Perdeu o último ano do liceu, o então sétimo, já que o terceiro período tinha ido à vida.

-         Vivia fechada em casa, pois sair implicava ouvir o que realmente não lhe interessava e responder a todas as perguntas, mesmo as mais irónicas.

-         Alimentava-se mal e porcamente, já que nada lhe passava na garganta e cada vez via mais longe o tão esperado perdão, dos que ela tanto amava e a quem tinha feito tanto mal.

-         A senhora Augusta, empregada de dentro de lá de casa, era a única que lhe fazia os miminhos, mas como via tudo tão negro, perguntava-lhe todos os dias pela “regra”, tinha até feito já uma promessa, para que nada de ruim acontecesse à sua Menina e passados uns dias, todos respiravam de alívio... do mal o menos...quis o destino, que essa mancha não tivesse caído em semelhante pano.

-         - A minha menina... os pais só perdoar-lhe-iam se ficasse muito malzinha e lá a convenceu a beber um cálice de vinagre todos os dias.

-         Não foram precisos muitos e a Bia acabava de contrair um boa de uma tuberculose.

-         Agora o assunto era mesmo sério, confirmava o Dr. Casal... médico de inteira confiança... chegava de castigos, teriam de pôr uma pedra em cima do assunto ou a Bia iria para debaixo das pedras.

-         Até a internamento no Sanatório do Caramulo, ela teve direito. Claro... para a primeira vez, mais parecia um Hotel de luxo e era efectivamente assim, dado que no primeiro andar, comia-se o que se queria e servido por criados de “libré”, coisas que só o dinheiro consegue fazer.

-         Ironia do destino...só mesmo uma grave doença, lhe trazia de volta, a sua condição de filha tão querida e perdoada, o que seguramente ajudou e como, na sua recuperação.

-         Virada esta página, ingressou no Liceu da sua terra, onde terminou com as melhores notas o famigerado sétimo ano.

-         O que não conseguia acabar, era com aquela saudade que continuava a queimar-lhe a alma e que todas as noites a banhava em sentidas e grossas lágrimas.

-         Mas, nada como o tempo em toda a sua sabedoria, para milagrosamente curar todas as feridas, embora deixando as respectivas cicatrizes, que têm o condão da maturidade e a Bia não fugiu à regra.

-         .Parecia até que a doença lhe tinha feito bem....comentavam, principalmente no feminino, obviamente com uma certa inveja. Pois o porte altivo e a elegância de uma verdadeira Rainha, ostentava delicadamente, aquela mulher em roupas de fino gosto, que só ela sabia usar, delineando aquele corpo de sereia, feito a própria tentação, emoldurado por uns cabelos longos e sedosos, em cachos naturais de ouro, que simplesmente enfeitavam um rosto belo, de pele branca e acetinada, onde dois olhos grandes e expressivos de cor de mel, sentavam em primeira plateia, assistindo ao grande espectáculo de uns lábios grossos, bem desenhados e maliciosamente sensuais, sempre que se entreabriam para sussurrar o que quer que fosse.

-         Era sem dúvida alguma um belo exemplar de uma jovem, candidata ao estatuto de uma mulher marcante, que tinha crescido demais, fruto da sua irreverência e porque não, dos seus pecados também.

-         E a vida foi continuando, sempre pautada pela saudade dolorida, do seu amado, que cada vez ficava mais distante.

-         Entrou na Universidade, formou-se em Germânicas, deu aulas em vários Liceus, casou por amor, nada parecido com a sua primeira paixão, com um belo rapaz, formado em engenharia civil, que tanto a amou e com quem teve três lindos filhos.

-         Divorciou-se passados dez anos, cursou de novo, desta feita, ciências da comunicação e começou por conta própria a dar novos mundo ao mundo, sempre insatisfeita, abraçando novas paragens, mas nunca se permitindo criar raízes.

-         Contraiu mais dois matrimónios, à partida socialmente correctos, mas de pouca dura, pois a sua independência e determinação, permitiam-lhe tudo, menos viver de faz de conta.

-         Correu Mundo, sempre enriquecendo os “seus guardados”, como lhe chamava, com aplausos, homenagens e reconhecimento, pelo seu trabalho, desempenhado com dignidade, engenho e arte, dando sempre enorme destaque ao “glamour”, que desde muito cedo, soube gerir como ninguém.

-         Mas o destino, ardilosamente surpreendeu-a e de que maneira.

-         Tinham-se passado vinte e dois anos, desde aquele episódio único, sim único mesmo, porque nem naquela época, passados tantos anos, ela tinha a certeza que nenhuma jovem teria a coragem de “tal feito”, que tanto sofrimento lhe tinha trazido, mas também o maior amor da sua vida.

-         Viajava então para Las Vegas, em companhia de quatro colegas, para uma semana de trabalho em grupo. Chegados ao Hotel Paris e pomposamente instalados, havia que tirar partido daquela cidade mágica, pois tudo mais parecia um sonho.

-         Explicar o inexplicável não saberia...mas porque raio não lhe apetecia sair naquela noite, mesmo diante de toda a insistência do grupo, que de resto nunca era preciso, pois era sempre ela que tomava as rédeas de todas as saídas e de todas as diversões, exaltando sem limites, a sua alma de boémia.

-         Naquela noite ficar-se-ia por ali mesmo... eles que saíssem, que se divertissem, mas que não contassem com ela... seguramente não lhe apetecia sair. Tinham a semana toda para o fazerem.

-         Assim, sozinha em seu quarto, desfez o saco, colocou as suas roupas no guarda fatos, tomou um duche, pôs um vestido preto, colado no corpo, com um decote ousado, calçou umas sandálias elegantíssimas de salto alto e finíssimo, um brilho especial nos olhos e nos lábios, olhou-se ao espelho e francamente gostava do que via, uma mulher nos seus trinta e oito anos, digna da admiração de qualquer homem e da inveja de qualquer mulher. Eram aproximadamente vinte e uma horas e quarenta minutos, hora local é claro e como tinha um “ratinho no estômago”, decidiu descer e dirigir-se ao restaurante.

-         Era um espaço super agradável, luxuoso, com capacidade para umas quatrocentas pessoas, embora segundo as suas contas, apenas umas cento e poucas, dessem trabalho aos talheres. Sentou-se numa das mesas logo á entrada, passou os olhos na ementa e enquanto isso acontecia, ouvia um som divino...vinha do lado oposto da sala, alguém ao piano interpretava o “Concerto de Aranguez”. Uma sensação estranhíssima, um frio gelado, um calor que a escaldava por dentro, não imaginava quem estivesse ali, mas uma certeza teve de imediato, aquelas mãos que beijavam as teclas do piano, já tinham acariciado a sua pele, já tinham arrepiado a sua alma, rasgado o seu coração, já tinham sido suas... levantando-se, dirigia-se elegantemente em direcção ao som que lhe chegava cada vez mais nítido, sentindo nas suas costas, todos os olhares, que só poderiam desnudá-la, tal o apetite que provocava na classe “dos machos”, o que francamente muito lhe agradava, pois sempre gostou de ser notada.

-         No canto esquerdo da sala, sentado ao piano, de frente para o público, nada mais nada menos que o seu grande e único amor... o mesmo porte altivo, os mesmos cabelos longos num “rabo de cavalo”, com alguns fios grisalhos, já que a idade não perdoa... mas um detalhe que logo lhe apertava o coração...usava uns óculos escuros.

-         Mal se aproximava dele, o espanto, a surpresa de o ver ali na sua frente, mal lhe permitiam falar, mas com imenso nervosismo... conseguiu, tendo apenas como resposta e grande exclamação, do seu Vladimiro... Minha Menina Mulher...

-         A sala de jantar fechava às vinte e três horas e ele tinha que encantar, com as suas notas musicais, toda aquela gente.

-         Claro que a Bia só tinha mesmo que esperar e como foi longa aquela hora e pico. Não conseguindo comer, pois a ansiedade de tudo saber dele, não lhe deixava passar rigorosamente nada, apenas a muito custo, engolia meia dúzia de colheres de sopa, de um creme de cebola.

-         Encantado com a presença de todos e agradecendo, prometia voltar no dia seguinte... meus Deus... como a Bia respirava fundo, abanando mais que um frágil arbusto, sacudido por um forte vendaval, foi ao seu encontro e num gesto profundamente carinhoso, pegando na sua mão, dirigiram-se ao bar do hotel.

-         Sentados numa mesa de canto, entre uma bebida e outra só tinham olhos um para outro, de mão na mão, apertadas com uma vontade infinita de nunca mais se largarem, iam dizendo tudo, perguntando-se e respondendo-se em todos os pormenores.

-         È verdade...dizia ele, quase ia tendo o mesmo infortúnio que o seu Pai, só que quis uma força maior, que ele não tivesse morrido, no mesmo número arrojado, passado de pai para filho, metendo a cabeça na boca do leão... desta feita, apenas fiquei cego, acrescentava conformado Vladimiro e como sempre amou a música e tocava bastante bem, valia-lhe isso mesmo, para ir ganhando a vida, animando bares e restaurantes. Mas afiançou-lhe que nunca se tinha esquecido da sua menina mulher e que sempre, em todas as horas, boas e más, a chamava e sentia a sua presença, como se de um anjo da guarda se tratasse e tinha a certeza, acontecesse o que acontecesse, sempre assim seria.

-         Dado o adiantado da hora, subiram para o quarto dela... lá se abraçaram, disseram coisas, confessaram pecados inconfessáveis e se amaram, sentindo que seria a última vez, embora ambos não tivessem tido a coragem de o pronunciar... Como foi lindo e sentido...agora sem os riscos e a leviandade de há vinte e dois anos atrás, saborearam  em todos os pormenores, aquele encontro que ficava gravado no sangue que corria em suas veias...bem que podiam morrer ali, nos braços um do outro, pois que mais a vida poder-lhes-ia dar?

-         O dia já tinha rompido e ambos percebiam que pela segunda vez, o destino cruel e implacável, os iria separar e seguramente para sempre.

-         O toque do telefone e do lado de lá do fio, um colega da Bia, perguntava se já estava pronta, pois estava na hora de trabalhar.

-         Abraçaram-se fortemente, beijaram-se sofregamente, com paixão e a raiva de quem pela segunda vez, permite a separação. Vladimiro tacteando delicadamente o rosto da Bia, banhado em lágrimas, pediu-lhe para o ouvir com toda a atenção, a certeza da promessa, que tinha para lhe fazer.

-         Vinte e dois anos de diferença, entre eles... pela ordem natural da vida, partiria antes, para onde não o saberia, mas jurou-lhe pela sua honra e grande amor, fosse para onde fosse, numa onda de qualquer um mar, numa nuvem, num pedacinho do inferno ou num pedacinho de céu... ele estaria à espera da sua Menina Mulher, sentado ao piano, interpretando o “Concerto de Aranguez”

 

 

Milena Guimarães

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