sexta-feira, 22 de novembro de 2013


                                                


 

             SURPREENDENTE

 

João Paulo, economista de profissão, com imenso sucesso, geria as suas empresas que iam de vento em popa.

Nos seus cinquenta anos muito bem tratados, com a ajuda de três idas por semana ao ginásio, alguns cabelos grisalhos, sempre bem vestido, desde o clássico ao desportivo, faziam dele um homem charmoso e muito bem cotado no mundo feminino... pois para além disto, era culto, tinha humor e esbanjava sedução...

Tudo isto era muito interessante, se não fosse a solidão, que morava a tempo inteiro, no seu coração... muitas mulheres tinham já passado e continuavam a passar, na sua vida, mas nenhuma o conseguia conquistar...que raio de saudade do seu primeiro e verdadeiro Amor, a Cecília, “Lia” como lhe chamava carinhosamente... nunca a tinha esquecido e já lá iam uns bons trinta anos... tinham-se conhecido no tempo da Faculdade, embora ela andasse em Medicina.

Filha de gente honrada, simples, mas com algumas dificuldades, motivo este que levou os pais dela a emigrarem para Moçambique...e assim acabava a paixão, que o marcou a ferros.

 

Vivia com todo o conforto, pois nada lhe faltava, apenas a tristeza de ser “só”, o incomodava e causava-lhe um certo medo.

Durante a semana, tudo decorria com a mesma rotina, o trabalho que lhe ocupava quase o tempo todo, mas sempre sobrava algum, para um belo jantar, sempre acompanhado de belas mulheres, com passagem obrigatória na sua cama, para depois restar apenas, um enorme vazio.

O pior eram mesmo os fins de semana... toda a gente das suas relações tinha família, menos ele...

 

Naquele Domingo, levantou cedo, vestiu umas jeans e uma bela camisa de algodão, tirou da garagem um dos seus topos de gama, BMW e fez-se à estrada, sem destino algum marcado. Tinha ainda quase meio depósito de combustível, mas para o que desse e viesse, entrou numa área de serviço e atestou o tanque. Pagou, comprou os jornais habituais e quando se dirigia para o carro, olhou casualmente para o contentor do lixo e algo lhe chamou a atenção. Tirou o carro do lugar, para que outros pudessem abastecer também e pô-lo no parque de estacionamento. Saiu de imediato e  dirigiu-se  para o dito contentor, onde uma jovem, que não teria mais de vinte anos, com uma criança ao colo, mexia e remexia no lixo.

-         Desculpe, perdeu alguma coisa, posso ajudar? Perguntou

-         Não, não perdi nada, estou a ver se acho é alguma coisa para eu e a minha filha, enganarmos a fome.

Quando olhou para ela, sentiu um enorme arrepio... pensou, Meu Deus... conheço esta cara, mas de onde?

Prontamente se apresentou, garantindo-lhe que era uma pessoa de bem e que nenhuma outra intenção lhe passava pela cabeça, a não ser ajudar e como estava sozinho, seria muito bom que ela aceitasse almoçar com ele. .

Ela ainda meio desconfiada e olhando para ele de soslaio,. foi logo dizendo... o Senhor não se parece nada com os outros motoristas, que me têm dado boleia, mas como depois eu não lhes dou o que eles querem, largam-me na estrada. Este último, ainda teve alguma consciência e deixou-me aqui, mas o Senhor parece mesmo que é bom homem e como eu e a minha menina já não nos lembramos de comer uma comidinha quente, aceito.

-         Pode vir tranquila, respondeu  ele.... e nem sabe a alegria que me dão,

Domingo e ter esta bela companhia.

A pequerrucha não teria mais que ano e meio... ele não tinha no carro cadeirinha própria, mas com todo o zelo, sentou-a no banco de trás e colocou-lhe o cinto bem à sua medida.

Começou então a viagem e longas histórias para contar.

À medida que iam conversando, ela ganhava mais confiança e ele continuava a cismar, que a conhecia de algum lado.

-         A menina é de onde e como veio aqui parar?

-         Isso é uma longa história, sabe?

-         Nasci em Moçambique, os meus Avós foram para lá há muitos anos,

Com a única filha que tinham, a minha Mãe que foi mãe solteira, tendo-me a mim. Casou mais tarde, mas o meu Padrasto era mau como as cobras e um belo dia, ela fugiu para a África do Sul e deixou-me com os meus Avós.

O coração do João Paulo começava a bater descompensadamente e nem queria acreditar, seria muita coincidência... calma, dizia si para si.

-         Ah... eu chamo-me Mariana e a minha filhinha é a Rafaela.

-         Como cheguei aqui deve querer saber... olhe aconteceu-me o mesmo

segundo os meus Avós, que tinha acontecido à minha Mãe, apaixonamo-nos as duas por dois trafulhas, má sina a nossa.

Entretanto aproximava-se a hora de almoçar e o próximo restaurante, seria o paradeiro deles.

E assim aconteceu, mais uns vinte kilómetros e um belo restaurante esperava por eles.

Entraram, sentaram-se e logo foram servidos... o que quiser para si e para a Rafaela, escolha à sua vontade...são minhas convidadas de honra, embora o

João Paulo já nem fome tivesse, algo lhe dizia, que tudo aquilo, só tinha a ver com ele e portanto, lhe pertenciam... ainda sem certezas, apenas coisas de intuição e da muita necessidade que algo muito forte mudasse a sua vida.

E ela, a Mariana continuava a contar-lhe, pedaços da sua vida, como se já se conhecessem há tempos infinitos, tal era a confiança que nele depositava, enquanto devorava uma belíssima refeição e carinhosamente levava a colher à boca da sua pequenita, como realmente...só com pelo menos quinze dias de jejum, come assim com tanta alegria..

O João Paulo, ávido de tudo saber, nem comia...

E eu, continuava ela, cheia de carinho e de tudo o que possa imaginar, por parte dos meus Avós, fui crescendo, estudei, mas nem um curso tirei, pois com os meus dezassete anos, apaixonei-me por um rapaz mais velho do que eu, dizia ter a vida muito bem organizada e que queria casar comigo, jurando-me amor eterno. Claro que só acreditei nele, mas como lá em casa ninguém acreditava… um belo dia... hoje digo e afirmo... mau dia, fugimos os dois, acabando por me trazer para Portugal.

Os primeiros meses foram de Paraíso total, rolava dinheiro, muito dinheiro, só me respondia que era um homem  com sucesso nos negócios, sempre que eu lhe perguntava.

Entretanto fiquei grávida da Rafaela. Nasceu e tudo era perfeito. Amávamo-nos loucamente e a vida para mim era um sonho real.

Um dia, ao final da tarde, bateram à porta. Fui atender, eram dois policias com um mandato de captura, para o meu Júlio, acusado de tudo quanto era tráfico, assalto à mão armada e até duas mortes, tinha no seu “curriculum” de perfeito “marginal”.

Só naquele momento, que mais era um terrível pesadelo, percebi porque mudávamos de casa e de terra, de dois em dois meses.

A Rafaela tinha então um aninho e uns diazitos...chorei toda a noite, aquilo não podia ser verdade, logo o meu Júlio que era um homem tão bom, meigo e que me tratava como rainha... e à filhinha, como verdadeira princesa.

O João Paulo estava sem palavras, perante tal descrição, mas foi acrescentando... Mariana, se lhe custa falar disso, ficará para outra altura, quero que coma, trate da Rafaela, que teremos muito tempo depois.

-         Não se preocupe, agora que comecei, quero acabar.

Enquanto havia algum dinheiro, fomos vivendo, depois começou o nosso inferno. Tivemos que sair da casa, pois o senhorio não se compadeceu de nós. Passamos muita fome, dormíamos ao relento, nos bancos dos jardins, pedi muitas esmolas, pois trabalhar em casa de “madames”, aos dias... poucas aceitavam, argumentando que a minha criancinha só estorvava.

Um dia, andávamos nós por Vila Real e o Júlio disse-me, agora ficas aqui mais a menina, que eu vou ali procurar trabalho. Lá fiquei naquele lindo jardim, a menina brincava e eu esperei, esperei e nada do Júlio aparecer. Muita gente passava, olhavam mas nada diziam, começou a escurecer e um frio de tanto medo de perder o meu amor, tomava conta de mim e o meu pressentimento era medonho. Nisto apareceu um homem de meia idade e perguntou-me o que eu estava ali a fazer, pois já tinha dado conta de mim há muitas horas ali sentada. Lá lhe contei o acontecido e ele logo foi dizendo que já era noitinha e que eu não podia ficar ali sozinha com a menina. - venha daí comigo, eu vivo com o minha Emília, somos gente humilde, mas sempre se dá um jeito e depois amanhã logo de verá o que fazer, pelo menos fica abrigada e come uma coisa quentinha, que lá nisso  de cozinhados, a minha patroa é muito boa. No dia seguinte, depois de algumas conversas e muita pena de mim, por parte deles, disse-lhes que o meu Júlio tinha-me dito que era de Penafiel, mas para lá chegar não tinha dinheiro. Dizia-me então o senhor Agostinho, era assim que este bom homem se chamava, - se é isso que quer, a minha senhora arranja-lhe uma merenda e eu meto-a na carreira para lá, mas se não o encontrar, leva dinheiro para a volta. E lá fui eu convencida que mal lá chegasse, seria muito fácil encontrá-lo... engano o meu, corri tudo, entrava nos cafés, descrevia como ele era e nada. Afinal ninguém o conhecia, apesar dele me ter dito que era muito falado e considerado na terra dele.

Com uma fotografia a única que tinha, fui à igreja principal e falei com o Padre, que mal botou os olhos na dita foto, foi logo dizendo, com um ar de piedade, que até a mim me deu dó... – Oh minha doce menina, ainda tão jovem e já com esse sofrimento todo. Esse aí é Júlio, Pedro, Manuel, António, Fernando e todos os nomes que me viessem à cabeça, seriam poucos, para ele usar falsamente, segundo cada crime que cometia, para fugir às autoridades.

O sangue gelou-me nas veias e as lágrimas grossas inundaram o meu rosto. Não podia ser o meu Júlio...

-         Tens para onde ir com a tua menina?

-         Não Sr. Padre, nem o que fazer da minha vida sei.

-         Não te preocupes, vais para minha casa, comida e onde dormires,

não falta, depois logo veremos o que será possível fazer. Tenho lá uma empregada muito rabugenta, mas não ligues.

Mas também isto pouco tempo durou, pois passados uns três meses, o Padre começou a sentir-se mal, já nem rezava a missinha dele, ainda saía da cama e sentava-se na sala, com uma mantinha nos joelhos e era a minha Rafaela que o animava com as suas diabrurinhas, que ele tanto gostava. Os dias foram passando e o meu anjo da guarda lá se foi para o Céu... pelo menos era isto que eu dizia á minha menina, que sempre perguntava pelo amigo dela. Ainda lá ficamos uma semanita, mas a empregada que era rabugenta e mal encarada ainda com o padre vivo, imagine depois dele ter partido. A comida que nos dava mais parecia lavagem dos porcos, enquanto ela e nem se escondia, comia belos petiscos.

Um dia logo pela manhã, disse que ia para a casa dela e fechar esta casa, por isso tinha que me fazer á vida, que não podia ficar com a gente e além disso nem família éramos do Sr. Padre que Deus tinha. Arranjou-me uma saquita com um bocado de pão e um naco de presunto... louvado seja Deus, eu nem estava à espera de nada. E assim começava mais uma vez, a minha triste sina, de terra em terra, pedindo boleia e alguma coisa para comer, eu e a minha pequena Rafaela.

-         Pronto, parece que lhe contei o principal.

Já no carro, depois de uma bela refeição a três, contavam apenas quilómetros para descontrair um pouco, tão pesada confissão.

-         Tens alguma memória da tua Mãe?

-          Ainda te lembras dela? Conta-me que eu gosto de te ouvir. - Tenho sim, quando ela fugiu eu já tinha seis anos, lembro-me como se fosse hoje. Era muito linda, dois olhos azuis, da cor do Céu e doces como o mel. O cabelo loiro em caracóis naturais, emolduravam o seu rosto angelical, de quem o meu padrasto morria de ciúmes, por isso lhe fazia a vida negra, entre palavrões e pancada, ainda levei muita, sempre que me metia no meio, daí compreender o facto de ela ter fugido.

-         Que saudades tenho da minha Mãe, da minha Querida “Lia”, como ela gostava que eu a chamasse, porquê... nunca o soube, pois era Cecília para cá, Cecília para lá.

-         E o Senhor, tem família, é casado, tem filhos?

Antes de qualquer resposta, João Paulo acelerou o carro, pois desejava chegar a casa o mais depressa possível uma vez que guardava com ele uma fotografia da  mulher que sempre amara e que segundo todos os relatos da sua nova amiguinha, estava muito perto de a poder agarrar e chamar-lhe filha, pensava... o destino não pode ser tão cruel que venha agora trazer-me isto e não seja realidade, acreditava que não pudesse haver tanta coincidência.

E num enorme silêncio, que ia deixando a Mariana preocupada, a ponto de lhe perguntar: - o Senhor já se cansou de me ouvir? está tão calado... -- não, é que já estamos quase a chegar a minha casa e quero te mostrar algo para mim muito importante.

 

Finalmente João Paulo começou a abrandar a marcha, virou à direita e com o comando abriu o portão... meu Deus eu nem queria acreditar no que os meus olhos viam, aquilo ali não era uma casa, mas um palácio...o jardim, a piscina, isto por fora, porque quando entramos, o espanto foi demais...os meus avós tinha uma casa bonita e nada faltava, mas isto aqui era coisa de reis e rainhas.

Instalaram-se, mostrou-lhe a casa toda, apresentou a senhora Alice, que era mais do que empregada, tratada como se fosse da família, era a governanta que cuidava de tudo e mandava na criadagem.

Quando lhe mostrava o quarto dele, aproximou-se da cômoda,  pegou uma fotografia e perguntou-lhe - gostas, é linda não é?- Mariana estupefacta, arrancou-lha da mão, tremendo como varas verdes e as lágrimas grossas banhando o seu rosto lindo, perguntava com a voz intercalada pelos soluços -conhece-a, onde está ela? é a minha Mãe, igualzinha ao dia que fugiu de nós, só estava com outra roupa, mas é ela! -porque é que tem aqui esta fotografia?

Vem cá, deixa dar-te o abraço que eu já não contava mais que acontecesse.- sabes? esta fotografia é da única mulher que amei em toda a minha vida e que os teus avós arrancaram de mim. Tantas promessas, tantos sonhos tudo por água abaixo, pois naquele tempo os filhos obedeciam aos pais e nem questionavam e principalmente sendo mulher.

Mas agora sim, tenho que gritar bem alto e dizer que sou feliz, pois tenho uma filha linda que és tu e ainda uma netinha, louvado seja Deus!

E os abraços e beijos repetiam-se sem conta, entre lágrimas e gargalhadas e a pequena Rafaela ria alto e brincava, sem nada perceber.

E assim, de um dia para o outro, a vida começava seguramente a fazer sentido, para todos naquela casa.

Uma noite, ao jantar... conversavam, riam e o João dizia...este ano, nas minhas férias, vamos à África do Sul...já decidi, vou entrar em contacto com a embaixada Portuguesa na África do Sul, para tentarem descobrir o paradeiro da nossa Lia, depois compro as passagens e vamos fazer-lhe uma surpresa. Quem sabe não seremos a família mais feliz deste mundo...

 

Não chegou a acontecer... nessa mesma noite, na TV, no fecho do telejornal, como notícia, uma homenagem a mais uma portuguesa célebre, notável em “cardiologia” radicada em Joanesburgo, onde tinha conseguido salvar tantas vidas, menos a sua, pois tinha acabado de falecer, vítima de um AVC  a famosa Doutora Cecília Mourato Brites de Carvalho, contava cinquenta e um anos de vida. Mais de metade dedicada por inteiro e por verdadeiro sacerdócio, às causas cardiovasculares, onde se notabilizou. Assim Portugal e África do Sul, unidos nesta falta irreparável, nesta profunda tragédia, acabam de empobrecer, perdendo desta forma fatídica, um dos maiores crânios da especialidade...

 

 

Milena Guimarães

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

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