sexta-feira, 6 de dezembro de 2013


 

 
 
                    MATEUS
 

         Mateus nasceu numa família de classe média alta, nas redondezas de Viseu, mais propriamente em Nelas. A mãe, senhora professora do Liceu, dava aulas de português ao então segundo e terceiro ciclos. Era uma mulher elegante, de feições delicadas, mas de pouco sorriso, parecendo sempre que a vida lhe tinha faltado com algo prometido. Era correcta com os seus alunos, não aceitava presentes em troca de boas notas, por isso mesmo temida pelos mesmos, mas com imenso prestígio entre os seus colegas e todas as pessoas que com ela conviviam. Em casa, mãe extremosa, companheira dedicada, dividia o seu amor entre os dois homens da sua vida, o filho e o marido.

         O Pai, médico de clínica geral, entre o seu consultório em Viseu e o que tinha na sua própria habitação em Nelas, exercia a sua actividade em perfeito sacerdócio, nunca se escusando em atender, com o mesmo empenho e dedicação, os mais desprotegidos pela sorte. Era um homem bom e estimado por toda a gente, como devem imaginar. De sorriso franco e palavra fácil, no entender daquela boa gente... diziam... o Sr. Doutor... aquele lá é mas é um santo... 

         E nesta família de bons princípios e muito amor, o Mateus crescia a olhos vistos, cheio de tudo, sempre com o estatuto de filho único. Traquina, mas muito inteligente, nem precisava de se esforçar muito, para cumprir as suas obrigações, pois tinha consciência, que ser filho da Senhora Professora, teria no mínimo que servir de exemplo, o que fazia naturalmente e sem custo, para orgulho dos seus pais.

         Fez-se um jovem bonito, alto, de porte atlético, educado, simpático até dizer chega e cobiçado obviamente por todas as garotas, que de tudo faziam para chamar a sua atenção, mas sem que alguma delas tivesse conquistado o seu coração. Brincava com todas elas, dispensava-lhes toda a atenção e muito carinho, mas nada passava além disso...sedutor em demasia, um verdadeiro D. Juan.

         Acabado o secundário e com excelentes notas, o rumo seguinte, só podia ser Coimbra e seguindo as pisadas do Pai, medicina estava no seu projecto de vida.

         Que outra coisa se poderia esperar do Mateus...belíssimo aluno, sempre admirado e estimado por todos os mestres que foi tendo ao longo do seu curso, pois com engenho e arte, soube sempre gerir a sua vida estudantil, participando de todas as farras, serenatas, bebedeiras e muita boémia, sem que os ditos excelentes resultados, fossem prejudicados, o que intrigava todos os colegas, nomeadamente aqueles que não conseguiam dar conta do recado.

         Acabado o seu curso e por mais que o seu Pai tivesse uma enorme vontade que ele ficasse na Terra, dando continuidade a todo um trabalho feito com alma e coração, o Mateus sempre recusou. Queria mais, muito mais...alvejava uma grande investigação e sabia que tinha talento para tal. Para isso, só os Estados Unidos lhe acenavam com a grande oportunidade.

         Depois de tantas conversas e embora as saudades que adivinhavam ser violentas, o importante mesmo, era que nada interrompesse a promissora carreira do Mateus. E assim, Nova York foi o destino escolhido, pois sem sombra de dúvida, era o primeiro que atendia todas as suas ambições.

         E tudo decorria ultrapassando todas as expectativas. Mateus entrou com todo o seu empenho na investigação da “Talidomina”, fármaco que era ministrado às grávidas e que passados alguns anos começou a dar resultados fatídicos, pois os bebés nasciam sem os membros superiores ou com eles perfeitamente atrofiados. Fascinado com os seus próprios resultados, tinha a certeza que era esta a nobre causa, que queria mesmo abraçar.

         Mas um dia, acordou com um aperto no coração... sem saber o porquê, pois tudo era simplesmente fantástico, tomou o seu banho e quando se preparava para sair, o telefone tocava. Atendeu e a pior notícia acabava de lhe ser dada. Os seus pais tinham sido vítimas de um enorme acidente de automóvel e os dois estavam internados no hospital. O Pai com ferimentos sem grande gravidade. A Mãe num estado de coma profundo...Meus Deus, aquilo não podia ser verdade.

         Meia dúzia de peças de vestir, num saco de viagem e a corrida para o aeroporto.

         Apesar de tudo ter sido feito a galope, mais parecia uma eternidade, tal era o desespero e a ansiedade em chegar.

        Acompanhou, sem se importar com refeições ou qualquer descanso, aquela tragédia, mesmo com tantos conhecimentos na matéria, sem nada poder fazer. O Pai, passados uns dias, tinha alta, completamente restabelecido para começar em corridas loucas, com o seu filho, as visitas sem hora de saída, à companheira e mãe, prostrada naquele serviço de cuidados intensivos.

         Tudo em vão...dez dias foram o suficiente e a nossa amiga não aguentou. Partiu deixando um doloroso vazio.

         Depois deste penoso capítulo, preparava-se o Mateus para regressar, quando o Pai lhe disse: meu filho preciso ter uma longa conversa contigo, sei que não será a melhor altura para o fazer, mas receio não ter mais oportunidade, afinal a vida dá tantas voltas... ouve-me com atenção e não me recrimines, sem antes eu chegar ao fim, preciso de muita coragem, para te falar de nós, depois farás o que o teu coração te ditar.

         Mateus ardia de curiosidade, mas muito apreensivo, principalmente pelo semblante pesado do Pai, pois nunca tinha visto semelhante expressão.

         Aqui estou Pai, mas  agora deixaste-me muito preocupado, afinal o que se passa, mais alguma tragédia?...pela sua cara...

         Não Mateus, acalma-te e ouve-me com atenção e se puderes não me interrompas, para eu conseguir ir até ao fim.

         Acreditem que eu nem sei qual dos dois mais tremia, se o pai ou o filho.

         Sentados em frente um do outro, num canto da sala, numa confissão única, as palavras determinadas e tremidas pela emoção, assumiam finalmente a verdade, na boca do seu Pai.

          Sabes meu Filho, o que tenho para te contar é uma longa história, a nossa história, jurada segredo para sempre, mas que agora, depois do que aconteceu à tua Mãe, não tem mais razão de ser e ela, onde estiver, vai compreender e aceitar esta minha atitude. Chegou a hora.

         Também eu fui um jovem como tu, alegre bem disposto, muito amado, amigo de uma brincadeira, mas sempre atento aos estudos. Nas minhas andanças por Coimbra conheci uma linda rapariga, filha única do Governador civil aqui de Viseu. Mimada, amada, destroçava corações, mas apaixonamo-nos à primeira vista. Foi um romance tão intenso, tão cheio de deslumbramento, que nenhum dos dois cabia em si, de tanta felicidade. Mas um dia e há sempre um dia, ela me confessou, com alguma frieza, o que mais me destroçou, que não dava mais. Ela queria seguir careira na investigação da genética e os Estados Unidos eram a sua meta. Claro, percebi logo o dedo do pai dela, metido no meio, já que éramos de famílias bem diferentes e cobardemente deixei-a partir. Chorei algumas lágrimas sentidas, mas fui percebendo que a vida continuava.

         Acabei o meu curso e com algumas dificuldades, cá me instalei, dedicando-me por inteiro à minha profissão, por vocação.

         Passados uns dois anos, já com as feridas curadas, mas ainda com as cicatrizes, conheci a tua Mãe. Professora de liceu, natural de Condeixa, tinha sido destacada para dar aulas aqui.

         Vivia hospedada em casa de uns amigos e como novata na terra, poucos, conhecimentos tinha, motivo pelo qual, a dona da casa que tão bem me conhecia, tentou nos aproximar e assim nos fomos conhecendo aos poucos e quando demos por ela, o amor tinha batido à nossa porta. Para mim, foi um sentimento sereno, que crescia a cada dia, nas mais pequenas coisas, mas nada parecido com a paixão que tinha vivido antes. A tua mãe sim, estava apaixonada e jurava-me... pela primeira vez, o que sempre acreditei. Adultos os dois, com a vida profissional engatilhada e o nosso amor que crescia a olhos vistos, decidimos casar. Quando me preparava para falar com os Pais dela, para a pedir em casamento, ela segurando a minha mão e olhando nos meus olhos, com uma seriedade que francamente me assustou, disse-me: Meu Amor... amo-te muito... o que eu mais desejo é casar contigo, mas não antes de te falar do meu segredo, que tanto me atormenta e que pode muito bem ser um empecilho para a nossa união e se for, entenderei e com o coração estraçalhado, só me restará guardar a lembrança deste grande amor, primeiro e único e ir embora daqui... jamais poderei ser Mãe, uma situação de infertilidade presenteou-me com esta profunda frustração.

         Oh... minha Querida, pensei até que algo mais grave se passasse. O nosso amor irá superar tudo isso e depois...quem sabe, tantas descobertas no campo da medicina e em último caso, sempre poderemos recorrer à adopção... Deixa-me abraçar-te e garantir-te, que juntos, iremos superar tudo isso.

         Com um doce sorriso, tentando enxugar as lágrimas sentidas que banhavam o seu rosto, dizia-me... que alívio... cada vez te amo mais, se é que é possível, mas deixa-me fazer-te um pedido: este será sempre o nosso segredo... nem família e muito menos os amigos, poderão saber disto.

         Selado o nosso trato, casamos e a nossa vida começou a dois, em perfeita partilha, embora sentíssemos, sem qualquer cobrança, aquele enorme vazio. Entretanto todas as tentativas para que a tua Mãe engravidasse foram feitas, só que os resultados negativos, aumentavam cada vez mais a sua frustração e acabamos por desistir e deixar por conta de Deus… quem sabe, um dia por milagre.

         Mas a vida, com alguma mestria e porque não armadilhas, acaba sempre dando uma mãozinha e arranjando soluções.

         Um dia a caminho do meu consultório, esbarro de frente...imagina tu meu filho, com a minha antiga paixão. Não queria acreditar, continuava cada vez mais linda, mais mulher, mais irresistível. O coração começou a bater forte e vi-me perdido, para o segurar. Falei de mim, que tinha casado e abraçado uma vida tranquila, em paz e com muito amor. Ela, estava só, dedicada à sua carreira, vivia em Nova York, com mil ocupações, sem espaço para um sentimento maior, até porque da grandeza do que ambos tinham vivido, ela tinha a certeza que jamais encontraria, sequer parecido, daí nem valer a pena, qualquer chance. Tinha tirado dois meses de férias, mais propriamente de descanso e precisava rever a família, os amigos e todos aqueles lugares, que a viram nascer e onde tinha sido tão feliz. Despedimo-nos, mas ambos tivemos ali, a consciência plena da necessidade de outros encontros. E assim aconteceu. Tudo servia de pretexto para nos encontrarmos clandestinamente. Amamo-nos só que desta vez, por inteiro e loucamente, sempre aumentando em mim, um turbilhão de pensamentos, penalizando-me pelo incorrecto do que estava vivendo com a tua Mãe, mas a força desta paixão redobrada, era superior a tudo.

         Acabado o seu descanso, mais uma despedida e a certeza de um até nunca mais, com a respectiva dor e saudade, que cada um tinha como garantia, ser um verdadeiro inferno, outra separação. E assim aconteceu pela segunda vez, mais uma dor violenta, só que esta tive que a suportar bem calada no meu peito e disfarçar completamente.

         Deves estar cansado de me ouvir, meu Filho...mas tem paciência, não imaginas o esforço que estou a fazer, para arranjar coragem e ir até ao fim. Nem consigo adivinhar o que te vai na cabeça, o que deves estar a pensar, neste momento, aqui do teu pai, pois pela tua expressão, todos os defeitos devem ser poucos para me insultares, mas deixa-me continuar e depois sim, ouvir-te-ei em silêncio e aceitarei a tua sentença.

         Não te nego, que a partir do momento que ela partiu, a minha vida passou a não ter qualquer significado, dediquei-me completamente ao meu trabalho e só encontrava felicidade nos pacientes, sempre que lhes conseguia devolver a saúde e a alegria de viver, pois nem o carinho, o amor, a dedicação e a grande preocupação da tua Mãe...sim, porque ela logo percebeu que eu não estava bem e atribuía a si própria todas as culpas, garantindo-me que sabia bem qual o motivo da minha tristeza, para minha desgraça.

         O tempo corria, quase parado e passados uns três meses, recebo no meu consultório uma chamada de Nova York… era ela. Não foi uma conversa, meu Filho, mas sim um pesadelo. Depois do habitual cumprimento, acrescentou... Ouve bem o que tenho para te dizer, só te tenho a ti para me ajudares nisto e por muito que me condenes e me odeies, tem que ser assim. Estou grávida, vamos ter um filho, mas por todos os motivos que bem conheces, não o vou poder assumir. Continuo solteira, usufruo de um prestígio e cargo na empresa que represento, que seria a minha derrocada, para além de não ter tempo e ter a certeza de não conseguir fazer esta criança feliz. Vou aguentar por aqui, enquanto puder disfarçar e depois irei para Portugal, lugar ainda a combinar, terei a criança, que quero e preciso… seres tu a ficar com ela, cuidar e amar, porque é tua. E se algum dia me poderes perdoar...

         As palavras secaram na minha garganta, o destino torturava-me... tanta amargura... Estás aí, perguntava ela, perante o meu silêncio, mas não conseguia falar... a muito custo lá fui dizendo... sim, estou a ouvir. Depois entro em contacto contigo acrescentou  e com um beijo despediu-se.

         A partir daqui, a minha vida passou a ser mesmo um inferno. Por mais que pensasse numa solução, senti-me perdido... um profundo abismo tinha-se erguido à minha frente. Tudo isto era muito cruel.

         À medida que o tempo passava, mais se fechava o cerco, mas era urgente tomar uma atitude e assim meu Filho, enchi-me de coragem e abri-me com a tua Mãe, confessando-lhe tudo isto e falando-lhe com toda a sinceridade dos meus pecados. Foi uma noite longa, cheia de acusações, dúvidas, muitas lágrimas, pedidos de perdão e promessas juradas. Afinal, já tantas vezes tínhamos abordado a questão de adoptar uma criança... seria em troca do seu segredo de infertilidade, pelo meu, nesta minha aventura desmedida em tanta paixão e depois eras mesmo meu Filho.

         A surpresa de tudo isto, a traição de que se sentia vítima, a humilhação de não poder ser Mãe e as lágrimas de desespero, naquele momento, tudo me levava a crer, que seria o nosso fim. Mas não, a aurora já despontava no horizonte e nós lá, debatendo-nos com este destino ao qual não tivemos como dar as costas.

         E de repente, como por milagre e acredito bem que sim, no milagre do nosso amor, estávamos nos braços um do outro, num abraço forte, intenso, como nunca havíamos dado, até então...e com palavras determinadas e cheias de emoção, olhou-me nos olhos e disse-me: Seja meu Amor, está decidido...vamos criar e amar o nosso Filho e fazer dele a mais feliz das crianças. Só que agora temos um segredo os dois e a promessa de que sempre será inviolável.

         Faltava sensivelmente um mês para o teu nascimento, segundo as contas dela, quando me telefonou, dizendo que já tinha acertado tudo e que iria para uma clínica em Espanha, Orense e que uma vez lá, chamar-me-ia.

         Aconteceu tudo daquele jeito programado ao pormenor, como tudo em sua vida e no dia 23 de Outubro, sob o signo de escorpião, nascias tu meu Adorado Filho. Passados quatro dias, chegava eu a casa, contigo no colo e com a promessa por escrito, da tua Mãe biológica, que a partir daquele momento, tu eras de verdade o nosso filho.

         Registado como tal e com o nome que a tua Mãe, essa sim de verdade, porque a partir do momento que te viu e carregou no colo, ficou perdidamente apaixonada por ti e que escolhia...Mateus... nascias em nós e de nós. O resto, já sabes...como te amamos, como te criamos e como sempre fizemos de ti, a pessoa mais importante das nossas vidas, orientando-te sempre, para seres o Homem que és hoje, que tanto orgulho nos dás, sim...porque a tua Mãe que nos deixou, esteja ela onde estiver, terá o mesmo orgulho em ti, que sempre teve.

         E agora meu Filho, que já sabes a tua verdadeira história, só me resta aguardar e aceitar o teu sentimento, para comigo, seja ele qual for e prometo que vou entender.

         Mateus levantou-se sufocado e banhado em lágrimas, abraçou o Pai fortemente e foi falando, segundo a sua grande emoção: Meu pai, se a minha Mãe te perdoou e me aceitou, amando-me tanto em me fazer seu Filho, que mais eu posso acrescentar, senão ter orgulho em vocês e bem dizer a hora em que nasci.

         Mas se estão a pensar que tudo acaba aqui, desenganem-se...muita coisa ainda este destino cheio de inquietude, reserva ao nosso Mateus.

         Encerrado este episódio, com tantas perguntas feitas a si mesmo e sem respostas, perante os factos consumados, Mateus pegou em si e carregando toda esta descoberta da sua vida, voltou aos estados Unidos, para continuar a sua investigação, interrompida pela fatídica partida da sua Querida Mãe.

         O seu talento e o brilhante desempenho na sua carreira, eram admirados por todos os que, de uma maneira ou outra, estavam ligados a si. Era convidado para todos os eventos profissionais e sociais, a que sempre conseguia conciliar os seus compromissos e aparecer, onde rapidamente era destacado.

         Num desses eventos, jamais lhe passaria pela cabeça, o que lhe estava reservado.

         Lá compareceu, elegantemente vestido e entre cumprimentos e vénias, passeava-se no enorme salão, até que chegou à anfitriã...uma verdadeira Senhora, nos seus cinquenta e poucos anos, alta, loira, discretamente maquilhada, fazendo sobressair tudo o que era lindo naquele rosto. Vestia de glamour, um vermelho cardinal. Um colar de pérolas exaltava o seu fascínio, completo no que se chama... “um crânio na investigação de bactérias”, na mesma Universidade que o Mateus frequentava.

         Uma irresistível simpatia nasceu de imediato entre os dois. Então é o famoso jovem Dr. Mateus? Que prazer imenso em o conhecer...todas as referências que ouço a seu respeito, não poderiam ser melhores...e Português...quanta honra, afirmava a gloriosa Senhora.

         Senti-me inchado de orgulho, como se dizia na minha terra, lá participei de toda aquela gala, sim... porque aqui e com gente deste gabarito, qualquer reunião, acontece sempre cheia de pompa e circunstância.

          Chegada a hora das despedidas, qual o meu espanto, quando a Poderosa me entrega em mãos, o seu cartão de visita e me diz: quero muito um dia destes vê-lo de novo, mas sem esta confusão toda. Aceita jantar comigo em minha casa? Nem sabia o que dizer confesso, era a primeira vez que tal me acontecia, mas é claro, com toda a minha timidez...aceitei. Ficou logo ali combinado. A caminho de casa, enquanto conduzia, dei comigo a falar sozinho: Mateus, que é que tens nessa cabeça, então não vês que ela tem idade para ser tua Mãe... mas o que será... que interesse, uma mulher daquelas tem em mim, para me convidar a jantar e logo na sua casa? Não te armes em esperto... Oh, claro...não pode ser nada do que estou a pensar... mas que raio, vou e ponto final, também não perco nada com isso e o que for, logo saberei.

         No dia combinado, um nervosismo apoderou-se de mim, nunca mais chegavam as oito horas da noite. Consegui despachar-me relativamente cedo, tomei um duche, vesti-me a condizer com a sua classe, comprei um belo ramo de flores e lá fui a caminho do dito endereço. Nem queria acreditar, uma daquelas mansões de sonho... o mordomo acompanhou-me até à sua presença e aqui, quase babei, perante tanta beleza... encantadoramente vestida, mas ousada e recebeu-me como um príncipe. Jantamos, rimos imenso, conversamos, falou-me do seu estado de alma, de mulher sozinha e do preço que pagava, alto demais... diga-se de passagem, pela sua condição de vida profissional, falou ainda dos amores frustrados e da solidão, que apesar de uma vida cheia de mil compromissos, começava a despontar em seu caminho.

         Depois do café e de um delicioso digestivo, convidou-me a acompanhá-la ao seu escritório, pois queria me mostrar a sua última pesquisa, em que estava envolvida num empenho total.

         Dirigimo-nos então para o dito escritório...Meu Deus, logo a minha atenção se dirigia para uma fotografia de um homem, na sua mesa de trabalho. Teria uns vinte e poucos anos, mas o traços, as feições, não me enganaram... Era o meu Pai. Tremendo como varas verdes e já com a voz enrolada na garganta, peguei na foto e mal perguntei: Quem é?

         Um amor, o único amor da minha vida, mas é uma longa história e que desde então, está definitivamente enterrada. Até hoje me penalizo, por não ter tido coragem de largar tudo e seguir a minha viagem com quem amei de verdade...mas...

         Não resisti ao impulso, peguei na minha carteira, abri e mostrei-lhe... Está a ver, olhe bem... este homem é o mesmo dessa fotografia e é o meu Pai. Um silêncio tenebroso aconteceu entre nós, por alguns minutos, não sei qual de nós tremia mais, sentamo-nos e tive a consciência plena de mais uma conversa séria, escrita nas páginas da minha vida. A minha Mãe biológica, a que não me quis, de quem se descartou como um simples objecto, estava ali bem na minha frente.

         Nem vos vou contar tudo que aconteceu, nem as palavras que trocamos, prefiro poupar-vos a isto. Apenas acrescento, que por todas as tentativas feitas da sua parte, para que um amor entre mãe e Filho se estabelecesse entre nós, a minha atitude sempre a mesma, fria e mesmo cruel: Mãe, a minha Deus levou-ma e muito cedo. Mas consegui manter sempre com ela, uma relação meramente cordial.

         Tudo isto vivido em perfeito turbilhão, a minha vida profissional, corria de vento em popa e era chegada a hora de mais um “mestrado”.

         A vida tinha-me ensinado tanto, tinha-me pregado tantas ciladas, que como por magia, comecei a transformar a raiva e o ódio em amor e preocupação pelos outros, principalmente pelo meu Pai, que vivia agora sozinho em Nelas. Está aí uma boa oportunidade. Comecei então a arquitectar com algum engenho e arte, a possibilidade de lhe devolver alguma felicidade, não numa forma de pagamento, mas porque ele a merecia, mais do que ninguém e porque me havia confessado, o grande amor da sua vida. Sem nada lhe adiantar, da minha mais recente descoberta, apenas lhe telefonei, pedindo a sua presença, na entrega do meu mestrado.

         Aceitou e foi uma festa a sua vinda.

         O tão desejado dia da entrega dos diplomas, na John Hopkins University, USA chegou e aqui sim, cabe-me a felicidade desmedida, de vos assegurar o maior orgulho, jamais sentido por um pai, como o meu sentiu em mim, dado que a melhor nota atribuída foi a um jovem português de nome Mateus Albuquerque Barros de Carvalho, natural de Nelas, distrito de Viseu.

         A meu pedido, o meu pai foi ficando mais uns dias comigo, tinha mesmo que ficar, pois queria surpreendê-lo e lá consegui falar com a Poderosa, como eu lhe chamava, ao que ela aderiu de alma e coração, combinando de seguida um belo jantar, em sua casa, em surpresa absoluta, para o meu pai é claro.

         E no dia, como quem não quer nada, perfeitamente natural, disse-lhe: Pai arranja-te com aquele teu charme, pois vamos jantar a casa de uns amigos meus e que são cheios de nove horas.

         Éramos dois perfeitos cavalheiros rumo ao desconhecido, à incerteza...só Deus sabe o que poderá acontecer esta noite, pensava eu.

         Lá chegados, a surpresa, o inacreditável, a vontade louca de gritar, estampados no rosto do meu Pai, bom...duma coisa tive a certeza, se não morrer do coração agora, não morre nunca. Acreditem que não conseguimos jantar. A emoção, a necessidade das palavras, as justificações, as desculpas, o perdão, as culpas, numa mistura fantástica de sentimentos... bom, pensei... estou a mais nesta cena e propositadamente, pedi imensa desculpa aos dois, mas tinha que me ausentar, para um compromisso inadiável, surgido à última da hora, aproveitando a chamada telefónica, que acabava de receber e que sem nada ter a ver com o assunto, tinha caído do céu.

         Resumindo, o meu Pai ficou naquela noite a sós com a sua amada e nos seis meses que se seguiram... Afinal não há duas sem três e agora para valer...

         Mas a vida é implacável e agora sei que apenas dá uma chance... e os dias felizes, apaixonados, que viviam finalmente em perfeita partilha, estavam contados.

         A Poderosa estava doente e sem forças, tinham-lhe detectado um cancro no cérebro e mesmo acompanhada pelos maiores em oncologia, de nada adiantava... piorava dia a dia, perdendo os sentidos da visão, da audição e mesmo quando deixou de falar, percebíamos no seu rosto cheio de dor, o único sentido que mantinha vivo, era a certeza que o seu filho estava também condenado a ficar órfão.

         Não durou nem um mês e mais uma horrível dor, uma triste tragédia, de todo adivinhadas, tomava conta das nossas vidas e cravava mais um punhal de ausência, na presença de tantas ausências, na vida desta família que de tudo tinha, à partida, para ser uma família feliz, mas que a vida nunca assim o permitiu.

 

 

 

         Milena Guimarães

        

        

        

 

        

        

     

 

        

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