segunda-feira, 20 de janeiro de 2014


                                                         

DOR


 

Nesta tarde de mil águas, compreendo-me e aceito-me, metade da felicidade e já me basta. O vento que sopra em desatino constante com  zumbidos por demais tempestuosos, que me traga metade do meu querer e já me basta. O anoitecer que desponta por de trás das nuvens, que me tire metade da solidão e já me basta .Para mim o amor fica-me justo, só visto paixão de corpo inteiro, despir metade da roupa e já me basta. Viajar na inquietude das minhas incertezas vagueio sem sentido, sem destino, desobedeço aos meus caminhos, misturo-me na intensidade de um momento, mas um abraço maiúsculo já me faz dormir, como só as flores dormem e então metade do seu jardim e já me basta. Na saudade imensa de séculos de existência, de sempre ser pouco com medo de ser inteira, de tudo ficar distante daqui e ser longe demais, metade da dor que me envenena a alma e já me basta. Ter tempo para ter o tempo que me sobra, de tudo o que me apetece fazer nos intervalos de tudo o que desfaço, com a raiva sentida do imperfeito,  metade da conquista desejada e já me basta.

Mas, agora penso eu; metade destas palavras todas, bastar-me iam para calar bem fundo este grito obsessivamente  ansioso, que corre nas minhas veias, desagua na minha alma e tanto fere o meu coração.

Milena Guimarães

 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

 

 
 
                                         CONFESSO             
 

Confesso que sempre vivi sem reticências, sem interrogações, com o fascínio das promessas, sem motivos para ficar, permitindo-me ser livre e louca o bastante, para deixar a minha essência florir.

Nesta possibilidade surpreendente de existir, fui vivendo à sombra dos meus gestos, das minhas atitudes irreverentes, das palavras sem aspas, sem ponto final.

Confesso, assim me fiz errante no deserto e na poeira dos tempos, fui superando todas as minhas tempestades, no limiar da minha inquietude e na frequência das coisas, no imperfeito amanhã, fui percebendo que só o "hoje" é imperativo.

Em gigantes carinhos, em mãos que se entrelaçam, consegui   partilhar palavras escritas na poesia do meu pensamento, que sempre voaram nas asas infinitas do vento, com um único destino do arrependimento irreversível, de todos os pecados que não cometi, privando-me de saborear toda uma loucura desejada na tormento do meu desespero.

Confesso, mesmo que os aromas da ternura, os sabores da paixão, os amores mais que perfeitos, tardem pela incerteza dos relógios feitos em areia nas praias de todos os mares, alimento a saudade de mim, busco a certeza de tudo, removendo a terra onde me embrulho, apanhando todos os rebentos, para plantar no quintal de alguma primavera que está para chegar.

 

Milena Guimarães

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014


                                                                           
 
 
                                                 PECADO MORTAL

 

 

 

Maria Manuela era realmente uma jovem muito bonita, alta, elegante, com um corpo bem definido, de pele branca acetinada, um rosto lindo, olhos esverdeados, cabelo loiro solto e rebelde, que num todo lhe conferiam um ar misterioso e selvagem. Por onde passava...deixava sempre bastante inveja "nas" e muita cobiça "nos". Nos seus dezassete anos, frequentava o 12º ano do Liceu, sendo uma aluna irrepreensível, sonhava um dia ser arquiteta já que as artes eram de todo a sua vocação.

Filha única de uma família classe média. O Pai, o senhor Artur, gerente na Caixa Geral de Depósitos, era um homem muito bem sucedido profissionalmente, atencioso e sorridente, sempre bem vestido, nos seus fatos de corte elegante, com o requintado detalhe das gravatas combinarem na perfeição, não escapava a olhares indiscretos e com uma certa malícia, que algumas das clientes lhe "botavam" debaixo das pestanas cheias de rímel.

A Mãe, enfermeira, trabalhava numa unidade hospitalar, em urologia. Gostava demais do seu trabalho, apenas um senão... fazia muitas noites. Mas era uma mulher muito feliz, pelo menos era isso que deixava transparecer, fazendo de todos os seus dias uma festa. Deolinda de seu nome, chamada por todos de Linda, tinha um sorriso encantador, de humor brilhante, sempre pronta a pregar uma partida aos colegas, para quebrar a rotina do trabalho. Os seus pacientes eram tratados naquele internamento, com um desmedido carinho, a ponto de sempre perguntarem quando a enfermeira Linda, estava de serviço.

Tudo levava a crer que esta família pequena mas unida, era efectivamente uma família feliz. As semanas decorriam com o seu habitual, trabalho casa, casa trabalho. Os fins de semana já tinham outra conotação, pois não se limitavam a serem apenas passados ora em casa dos pais, ora em casa dos sogros, com os tradicionais almoços, na sua maioria saiam os três para longos passeios e um almoço num requintado restaurante.  Quatro casais, com os respectivos filhos, entre eles os seus compadres, os padrinhos da Maria Manuela, conviviam entre si com uma enorme amizade sempre prontos para as festas de aniversários, carnavais, passagens de ano, em casa de uns ou de outros, onde tudo era motivo para se divertirem e serem felizes, o que conseguiam facilmente.

Tinham acabado de construir a casa dos seus sonhos, num terreno que os pais da Linda lhes deram, com empréstimo mais que bonificado, ou não fosse o Artur gerente na tal Caixa...dois bons carros topo de gama, muito conforto e a vida sorria  sem que nenhum se questionasse do que lhes ia na alma.

 

Naquele dia, Linda foi ao supermercado como o fazia tantas vezes, sem sequer poder imaginar, que ali mesmo acontecia o princípio do fim. Atenta às suas compras e completamente alheia a tudo o que a rodeava, foi surpreendentemente abordada pela professora de Português da sua filha, a Dr.ª  Isabel que se mostrou logo feliz naquele encontro inesperado. Cumprimentaram-se e a professora foi logo dizendo que gostava imenso de trocar algumas palavras com ela. Combinadíssimo, mais umas coisinhas que faltavam e as duas encontrar-se-iam na Confeitaria do supermercado. A Linda foi a primeira a chegar, sentou-se e pensava: que raio de assunto terá ela para me falar? a minha Manuela é tão boa aluna... teria acontecido alguma coisa? entretanto chegou a professora interrompendo assim os seus pensamentos.

Sentou-se, ambas pediram um chá e umas torradas e enquanto esperavam a professora foi logo dizendo: A dona Linda sabe que eu, para além do aproveitamento dos meus alunos, tenho uma enorme preocupação, estou sempre atenta e pronta para os ajudar no que mais eles necessitam, sou assim uma boa confidente e tenho a maior cumplicidade com eles. Sinceramente nem acho que seja mérito meu, mas sim o facto de não ter família, acabo por ter todo o tempo do mundo.

Lá isso é uma grande verdade, comenta a Linda, não ter marido nem filhos para cuidar é muito bom, mas por outro lado a solidão é muito cruel.

Bom, mas na verdade o que eu quero conversar consigo é sobre a Manuela... não, não é sobre o aproveitamento dela, pois é uma excelente aluna. O que me intriga é o facto de ela ser uma das mais bonitas alunas que tenho, todos os rapazes a abordam e ela nem troco dá. Como sabe nestas idades e até mais cedo, todas as jovens têm uns namoricos. Acho estranho, já tentei várias vezes ter uma boa conversa com ela, mas não resultou. Vejo-a sempre isolada, pensativa. Por mais que a questione, será que tem algum amor clandestino, um homem casado, uma tendência sexual de lesbianismo?- a Dona Linda ainda não reparou em nada?

Sabe como é Dr.ª Isabel eu e o pai preocupamo-nos em que nada lhe falte, depois como ela é tão boa aluna e o nosso trabalho ocupa-nos tanto tempo e como ela não nos traz nenhum problema, achamos que tudo vai bem, mas agora estou preocupadíssima e vou tentar falar com ela.

Isso, faça isso Dona Linda, pode ser até cisma minha, retruca a professora.

Despediram-se e a Linda lá foi para casa, cheia de dúvidas, pensamentos estranhos e muitas culpas... será que se passa alguma coisa preocupante com a minha menina e eu nada percebi, oh meu Deus...não vou-me perdoar nunca.

Chegou a casa, tirou as compras do carro, arrumou-as e nem o Artur, nem a Manuela tinham ainda chegado. Foi preparar o jantar e uma infinita ansiedade apoderou-se dela de uma tal maneira, que tremia por todos os lados. Falava de si para si- Linda tem controlo nessa tremedeira, olha que eles vão perceber...tens que disfarçar e fazer de conta que nada se passou. Lá foi conseguindo com enorme esforço.

Jantaram e tudo decorreu como habitualmente. As mesmas conversas e o ritual de sempre. O marido e a filha ajudaram a levantar a mesa, a Linda arrumou a cozinha, o marido sentou-se no sofá a ver televisão e a filha foi para o quarto dela.

Passada uma horita, a Linda foi ter com a Manuela ao quarto, sentou-se na beira da cama e começou a falar com ela, debaixo de uma grande pressão, pois não queria de modo algum que ela percebesse a sua preocupação e lá foi soltando as palavras com imenso cuidado e alguma naturalidade: então filha como é que vai tudo lá no Liceu? oh Mãe, vai tudo bem. - Pois filha, sabes não era bem isso que eu queria saber...é que tu és tão bonita, elegante, simpática e não te vejo com nenhum namoradinho, passa-se alguma coisa contigo? eu na tua idade, já estava farta de namorar e olha que os tempos eram outros, cheguei a levar algumas tareias dos teus avó, por conta disso. - tens cada uma Mãe, então é essa a tua preocupação? não acho graça a nenhum colega lá do Liceu, são todos uns putos, sem mentalidade, bué de infantis, além de que eu estou determinada a formar-me  e depois sim, penso nisso...também ainda sou tão nova e não vês que agora cada vez se casa mais tarde?

Perante as respostas da filha, que lhe pareciam tão sinceras e naturais, sentiu-se mais aliviada e achou mesmo que era cisma da professora. Tens razão Manuela, eu só quero que tu sejas muito feliz, sabes como é...preocupação de mãe. Deu-lhe muitos beijinhos de boa noite, saiu do quarto, respirou fundo e pensou: ainda bem, graças a Deus a minha menina é na verdade a melhor filha do mundo.

E tudo continuou como antes, afinal estava tudo bem e não havia mais o peso da culpa, de ser distraída por conta do trabalho, mas sim a promessa que fazia a si própria: vou arranjar mais um tempinho para dedicar à minha filha, só temos esta e ela tudo merece.

Na semana seguinte, numa quinta feira a Linda foi fazer noite. Por volta das vinte e duas horas sentiu umas dores horríveis nos intestinos, o médico de serviço atendeu-a de imediato, medicou-a pois tinha-lhe detectado uma gastrite. Lá se foi aguentando, mas com algum esforço, até que o colega que estava de serviço com ela, disse-lhe: - oh Linda vai para casa, deita-te e descansa, não há necessidade de estares a trabalhar com tanto sacrifício, eu aguento e seguro bem o trabalho, depois só falta a medicação da meia noite e todos descansam, se houver algum contratempo eu dou conta do recado. A Linda a princípio  ainda recusou, mas acabou por aceitar, trocou de roupa e lá foi para casa.

Chegou com algum custo, meteu o carro na garagem e subiu. As luzes estavam apagadas e o silêncio era total, pensou; já estão a dormir. Subiu ao segundo andar, dirigiu-se ao quarto dela, abriu a porta devagarinho para não acordar o marido e deparou-se com o inimaginável.  A luz do candeeiro da mesinha de cabeceira acesa e os dois, o marido e a filha nus, em cima da cama, faziam amor, sexo explicito acompanhado de palavras obscenas.

 

Milena Guimarães